segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Gazeta em forma de e-meio – Ano Novo 2010

Regalo de Ano Novo

O Sistema Nacional de Orquestras Juvenis e Infantis da Venezuela já se destacava pela nobreza, qualidade e importância da iniciativa desde que foi assumido pelo maestro José Antonio Abreu, há 35 anos. Nos últimos dez anos, recebeu da Revolução Bolivariana um impulso de tal ordem que o transformou em fenômeno mundial.

Segundo o site do Sistema (http://www.fesnojiv.gob.ve), atualmente participam 350 mil jovens e crianças que frequentam seus 180 núcleos de formação musical distribuídos em todo o país. No concerto de estréia do primeiro Centro de Ação Social pela Música, um portentoso edifício de 11 andares inaugurado ano passado em Caracas, que abriga uma enorme sala de concertos super bem equipada e especialmente projetada para execução de performances orquestrais, o presidente Hugo Chávez autorizou recursos para a construção de edifícios semelhantes em cada uma das 24 capitais dos Estados (nove deles já com obras iniciadas), a ampliação da capacidade para até um milhão de jovens e crianças e a criação de tantos núcleos quanto sejam necessários. A formação artística e musical é inteiramente gratuita e aberta a toda criança ou jovem com inclinação para a arte, e, à medida que evolui e se integra no processo, o aluno vai recebendo vários incentivos, como bolsas de estudo, instrumentos musicais, inclusão em conjuntos locais e regionais, colocações profissionais, etc.

“Venezuela semeada de orquestras” é o lema do Sistema que conta com o apoio total do governo revolucionário, o qual fez até aprovar legislação para que cada município, estados e nação sejam obrigados a constituírem suas orquestras, coros e outras formações musicais, em quantidades e dimensões proporcionais ao número de habitantes e aos respectivos orçamentos, criando assim o mercado de trabalho capaz de abrigar o grande número de profissionais que vão sendo formados.

Os resultados do gigantesco investimento não se fizeram esperar: o Sistema mantém hoje nada menos que oito grandes agrupações orquestrais e corais de renome mundial, e a principal delas, a Sinfônica Jovem Venezuelana Simón Bolívar, depois de sucessivas e ovacionadíssimas turnês nos EUA e na Europa, foi incluída pela crítica internacional entre as cinco principais orquestras do mundo.

Ao lado da China, a Venezuela tornou-se um celeiro de músicos de alta qualidade e muitos dos talentos ali revelados já possuem currículos de celebridades internacionais da música contemporânea, erudita e popular, com destaque para o regente Gustavo Dudamel, de 28 anos, que é considerado, sem favores, o maior maestro jovem do planeta e um dos mais importantes diretores de orquestra em atividade na música erudita contemporânea. Sua formação foi feita integralmente pelo Sistema.

Veja a apresentação de lançamento do seu álbum com a Sinfonia Nº 5, de Mahler, pela Deutsche Grammophone: http://www.youtube.com/watch?v=4exocK5kB9w&NR=1

Pelo incalculável valor de seu trabalho de educação musical, o maestro José Antonio Abreu tornou-se também um dos nomes da música erudita mais celebrados em todo o mundo, e tem recebido inúmeras e importantes premiações e condecorações por toda parte. Veja o seu depoimento, na ocasião em que recebeu o prêmio TED, que lhe foi concedido pelo município de Los Angeles, EUA, em fevereiro deste ano: http://www.youtube.com/watch?v=Uintr2QX-TU&annotation_id=annotation_740530&feature=iv

O governo da Venezuela estimula o Sistema a exportar gratuitamente a experiência e os métodos nele desenvolvidos e várias cidades, estados e países já começaram a implantá-lo, com a sua consultoria sem ônus, nos EUA, Europa, Rússia, Cuba e outros países da América Latina. Foi oferecido diversas vezes ao Brasil, inclusive com turnês da mais famosa de suas orquestras e o mais destacado de seus maestros, mas parece que o “sistema” daqui não achou boa idéia. Infelizmente.

O maior sonho deste gazeteiro é que a infância e a juventude brasileiras tivessem a mesma chance dos muchachos venezuelanos, em escala nacional.

Por isto, a equipe da Gazeta, formada por este gazeteiro e Fredera (responsável pela sugestão deste regalo) oferece aos leitores um brinde para este fim de ano e começo de década: o Concerto de Ano Novo 2008, completo, da Sinfônica Jovem Venezuelana Simón Bolívar, com a regência de Gustavo Dudamel, realizado em janeiro do ano passado, em vídeos muito bem gravados pela DW-TV (alemã) que podem ser acessados nos links abaixo, ordenados pela Gazeta na mesma sequência do programa e com os principais créditos artísticos.

É bom de ouvir, é bom de ver, é bom saber.

Ajustem seus fones de ouvido, e boa viagem!


Abraços

Mario Drumond


Concerto de Ano Novo da Sinfônica Jovem Venezuelana Simon Bolívar (SJVSB)

Realizado na sala de concertos do Centro de Ação Social pela Música de Caracas, em 1 de janeiro de 2008. Gravado ao vivo pela alemã DW-TV.

Vídeo 1 (Introducão - ao final deste vídeo, automaticamente se transferirá para o seguinte, e assim, sucessivamente, até o fim do concerto; os demais links seguem para publicar o programa e para o acesso direto a cada performance)

http://www.youtube.com/watch?v=7myRxFGatro&feature=PlayList&p=38CE9FD46F6EDEEC&index=0&playnext=1


Vídeo 2 ("Gran Fanfarria", de Giancarlo Castro, com o conjunto de metais da SJVSB)

http://www.youtube.com/watch?v=C1CIlc88LAM&feature=PlayList&p=38CE9FD46F6EDEEC&index=1


Vídeo 3 ("Guerra de Secciones", de Félix Mendoza, com o conjunto de metais e percussão da SJVSB)

http://www.youtube.com/watch?v=YQWX6uj-_YI&feature=PlayList&p=38CE9FD46F6EDEEC&index=2


Vídeo 4 ("Sensemayá", de Silvestre Revueltas)

http://www.youtube.com/watch?v=BHZE0t10qpA&feature=PlayList&p=38CE9FD46F6EDEEC&index=3


Vídeo 5 ("La Conga del Fuego", de Arturo Márquez)

http://www.youtube.com/watch?v=a5mutfzl6qg&feature=PlayList&p=38CE9FD46F6EDEEC&index=4


Vídeo 6 (três mambos: "Que Rico el Mambo", "Mambo Nº 5" e "Mambo Nº 8", de Dámaso Pérez Prado)

http://www.youtube.com/watch?v=GouLmkd8HHI&feature=PlayList&p=38CE9FD46F6EDEEC&index=5


Vídeo 7 ("La Cabra Mocha", de Pradelio Hernández, com Aléxis Cárdenas Ensamble: Aléxis Cárdenas, Violino; Diego Álvarez, Cajón; Jorge Glem, Cuatro; Gonzalo Teppa, Contrabajo)

http://www.youtube.com/watch?v=TL20cu-QEmI&feature=PlayList&p=38CE9FD46F6EDEEC&index=6


Vídeo 8 ("Viajera del Río", de Manuel Yánez e "Vôo da Mosca", de Jacob do Bandolin, com Alexis Cárdenas Ensamble)

http://www.youtube.com/watch?v=K8eVLjH_O40&feature=PlayList&p=38CE9FD46F6EDEEC&index=7


Vídeo 9 (Parte 1: "Fuga con Pajarillo", de Aldemaro Romero; solista: Alexis Cárdenas, violino)

http://www.youtube.com/watch?v=j-wXk5R77bE&feature=PlayList&p=38CE9FD46F6EDEEC&index=8&playnext=9&playnext_from=PL

Vídeo 10 (Parte 2: "Fuga con Pajarillo", de Aldemaro Romero; solista: Alexis Cárdenas, violino)

http://www.youtube.com/watch?v=qGm5UNtZ6YM&feature=PlayList&p=38CE9FD46F6EDEEC&index=9


Vídeo 11 ("La Muerte del Ángel", de Astor Piazzolla, com o Conjunto Atalaya, formado pela Seção de Percussão da SJVSB)

http://www.youtube.com/watch?v=58CKaJKg-Uc&feature=PlayList&p=38CE9FD46F6EDEEC&index=10


Vídeo 12 ( "Mambo", de Leonard Bernstein, das Danças Sinfônicas de "West Side Story", versão do bis)

http://www.youtube.com/watch?v=mUKWo6M6NPY&feature=PlayList&p=38CE9FD46F6EDEEC&index=11


Trailer de "A promessa da música" (Documentário de Enrique Sánchez Lansch, produzido pela DW-TV, Alemanha, 2008)

http://www.youtube.com/watch?v=G3AWMSVNWCs&feature=PlayList&p=38CE9FD46F6EDEEC&index=12

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Gazeta em forma de e-meio 111 – Especial

Caro José Sette,

Respondo, pela Gazeta, ao seu texto de justo desabafo, que segue na íntegra (e com os erros corrigidos), porque creio que o papo seja de interesse geral e as informações nele contidas são importantes e devem ser divulgadas. Suprimi apenas a crítica de Luiz Rosemberg, pois já a publiquei aqui. Começo por uma frase que o saudoso Rogério Sganzerla gostava de citar, parafraseando Fidel Castro, mesmo sabendo que ela não diminuirá o seu desânimo e até corro o risco de que ela o aborreça ainda mais.

Mas vou insistir: “a História está a nosso favor”.

Com ela, eu quero lembrá-lo de que você não está só, que o seu caso não é único e que eu me considero tão penalizado quanto você e os demais companheiros que atravessamos o interminável deserto sem miragens (isto é, sem visões, sem cinema) em que se transformou a comédia desumana da criação nacional, na infeliz quadra das três últimas décadas.

Não é que antes estivéssemos em terras férteis; já nos havíamos com um deserto, mas, com belas miragens e alguns oásis. Lembro-me bem que, juntos, no último oásis em que se constituiu a Oficina Goeldi, quando, em 1980, abrigou o Encontro de Cinema Independente que o Sylvio Lanna agitou aqui em BH, tentamos – e conseguimos – plantar coisas, e fazê-las vingarem. Nós, que na juventude recusamos vender nossas almas ao diabo acreditando que seríamos capazes de resgatar o mundo de suas mãos, enfrentávamos de peito aberto todas as tormentas, e de muitas saímos vitoriosos – e como! E foi assim, cada um por sua via, mas ambos crédulos, sem mais nada a não ser a confiança em si mesmos, é que adentramos corajosamente o deserto, esse labirinto sem paredes, em que ainda permanecemos buscando uma saída.

Quando, depois de alguns passos irreversíveis na aridez espinhosa em que nos metemos quase sozinhos, percebemos a derrota, até tentamos negociar com o diabo, mas era tarde... Eu, mudando-me com a Oficina Goeldi para São Paulo e, anos depois, para o Rio. Você, entregando de mão beijada a sua obra cem por cento brasileira e a sua própria carreira de cineasta nas mãos de Mefisto em pessoa, na doce crença, talvez por não ver outra alternativa no horizonte, de que, por um milagre que jamais aconteceu, ele se tornaria o seu anjo da guarda. A ambas, obra e carreira, Mefisto desde então sequestrou do público (pagante e não pagante). O inferno só negocia com carne fresca e tenra, José, e nós já estávamos para lá de maduros. Mesmo sabendo que este inferno latino-americano é um inferno subdesenvolvido, morno e que só tem para negociar mal resolvidas questões de pecúnia (nunca a Glória – esta é capital exclusivo dos diabos do norte), nós queríamos, sim, e tentamos negociar. E só conseguimos a lista negra, compadre.

No entanto, se não podemos culpar a ninguém, exceto a nós mesmos, pelos dissabores que sofremos, não caminhamos em vão: se ainda não vingaram nem deram frutos os nossos plantios dessa quadra, a verdade é que em nenhum momento deixamos de cultivar sementes raras, bravas e resistentes que haverão de brotar mesmo no deserto e alimentar os passos peregrinos dos que virão depois de nós. É a História. Nós enganamos o diabo, José. Amaxon é filme para uma platéia futura, a que um dia renascerá da que morreu com Glauber Rocha, em 1981.

Cuba tem sérios problemas estratégicos para enfrentar e não pretende aumentá-los escolhendo filmes brasileiros para seus festivais de cinema. Mais fácil para Cuba é deixar que o diabo daqui o faça. Por sinal, o mesmo que decide quais filmes entram no festival potiguar, no das peruas de Tiradentes e no de Quixeramobim. Você crê que alguém decide o que da produção nacional vai ser exibido nas telas, as pequenas e as grandes, daqui e de fora, a não ser ele (ou “eles”, como diria o Fredera)?

Recordo-me que, no Encontro de Cinema Independente, era forte o espírito do Glauber, mesmo sem que estivesse presente, e o Sérgio Santeiro fez uma inesquecível defesa da obra dele, desfazendo muitos dos aspectos negativos da criativa polêmica que então se travava entre Glauber e os independentes, com as proas de Júlio e de Rogério.

O Festival de Brasília de 1981, que, com Um Sorriso Por Favor, ganhamos com valentia oswaldiana e glauberiana, foi o primeiro sem Glauber, que fora assassinado há poucos meses, e ali percebemos, como nunca antes, a falta que ele fazia (e faz!). Glauber possuía o dom inigualável de denunciar, desmascarar e desmontar, com impiedosa habilidade, toda a charlatanice velhaca dos que tentam frustrar, fraudar ou mudar a História, como os atuais organizadores de festivais que nada sabem ou não aprenderam daqueles que os antecederam e que deveriam reverenciar - para citar só alguns: Cosme Alves Neto, Wilson Coutinho, Frederico Morais, Ronaldo Brandão, entre outros mestres em arte e cinema que tivemos o privilégio de conhecer de perto, e recebendo deles a consideração e a admiração com que sempre contemplaram a nossa ousadia criadora.

O que já é definitivamente História e que muito nos orgulha. Por que alguém tentaria frustrar, fraudar ou mudar a História, se nenhuma dessas pretensões é possível de realizar-se, uma vez que o passado é imutável?

Elementar, meu caro leitor: é que a História está contra “eles”.

José, receba a solidariedade deste seu companheiro de sucessos e desditas; você, exímio escritor audiovisual, não precisa se desculpar por erros de ortografia e digitação.

Um forte abraço do

Mario Drumond


Segue a íntegra de seu desabafo:


AMAXON

Não queria mais falar sobre o complexo e misterioso sistema que movimenta o cinema brasileiro, mas, com as últimas notícias recebidas, não posso me furtar a algumas verdades e tenho que escrever, talvez, um último libelo sobre a ignorância dos organizadores de mostras e festivais de cinema por todo o país e também no exterior.

O cinema, para mim, mais que a literatura, é uma leitura sofisticada do saber humano aos olhos de um observador atento. Um observador que saiba ver e tenha visões.

Alguns observadores são distintos: um intelectual bem informado; um bom artista; um ser inteligente, alguns pretensiosos, outros destrutivos; um crítico pernóstico, invejoso; um taumaturgo apaixonado pela magia do audiovisual; um déspota disposto a por fogo em Roma; um anarquista desordeiro; um músico sensível e outro ordinário; um pintor de quadros e outro de paredes; um burocrata arrogante; um profissional libertino; um liberal punheteiro; prostitutas e madames, autores e estrelas. Qual destes personagens viu Amaxon?

Para cada espécie de observador existe um texto, um filme específico, que na certa ele vai se identificar e gostar, mas a grande maioria dos que observam a grande tela são diletantes, pessoas que entram na sala de cinema levadas pela mídia, hoje massacrante, das grandes empresas de comunicação.

Essas pessoas, da classe média, que não passam de 12 milhões de espectadores, fazem o público alvo para os grandes sucessos dos filmes nacionais e estrangeiros. São eles que geram o aumento da fortuna daqueles privilegiados que já estão muito ricos, produtores e exibidores, pois continuam produzindo no Brasil os seus filmes comerciais com os milhões necessários da renúncia fiscal. Pergunto: por que não se cria um cine-banco de investimento para os filmes que pretendem conquistar o grande público?

O processo político-cultural precisa urgentemente de uma reforma de base.

Digo isso para mostrar que os festivais de cinema no Brasil, também produzidos com valores superiores a um milhão de reais e incentivados com dinheiro da renúncia fiscal, deveriam continuar a existir, mas redirecionados ao observador atento às novidades do mundo cinematográfico, atento para o novo, em termos de estética e de linguagem, e tudo mais que o cinema contemporâneo e de invenção feito no país está criando - são geralmente filmes de baixíssimo orçamento, novos e experimentais -, e não unicamente direcionar o olhar inteligente para os filmes que têm todas as mídias à disposição, com lançamento simultâneo em salas por todo Brasil. Para que eles precisam dos festivais?

Não estamos falando de impedir que as grandes produções sejam exibidas nos grandes e pequenos festivais - são mais de cem festivais no Brasil -, mas, sim, de que cada festival tenha espaço para o cinema inventivo, visionário, poético, diferente daquilo que o público está acostumado. Um cinema de artesão. Na questão do filme Amaxon, meu único interesse era de exibi-lo, de graça, para um público seleto que freqüenta os festivais – nada mais.

Nunca se deveria recusar a exibição de um filme como este, que é, no mínimo, uma nova contribuição ao pobre universo das artes cinematográficas brasileiras, especialmente por ele ter sido realizado por um diretor – produtor – fotógrafo – roteirista – editor experiente e consagrado, com mais de vinte filmes de longa, média e curta metragem produzidos, alguns deles até bem premiados. Alguma coisa anda errada com as cabeças do poder neste país.

Faz muitos anos que não mandava meus filmes a nenhum festival de cinema. Eu já sabia quais eram os critérios adotados por todos eles – a exibição e seleção única dos filmes que possam interessar ao grande público, excluindo todos os outros que possam criar polêmicas desnecessárias e incômodas para a indústria do entretenimento.

Por insistência da família, preocupada com o meu isolamento, pedi ao jovem fotógrafo do meu filme que remetesse um DVD para os últimos três festivais que, no final deste ano, apresentavam-se abertos a novas inscrições. Pareceu-me interessante a experiência: Cuba – Natal – Tiradentes. E me preparei para o pior, pois fico arrasado quando recusam o óbvio irrecusável.

É quase um acinte: o filme foi sumariamente recusado, como eu previa, pelos três festivais.

Recusado três vezes pela ótica mercantilista, retrógada, mesquinha, insensível, colonizada, cega e estúpida de observadores de porta de festival, desatentos; principalmente os nacionais, como os de Natal e de Tiradentes. Pensando bem, eles estão certos em recusar o meu filme – polêmico, anarquista, novo, inteligente, poético, inventivo, provocador – diferente de tudo que tenham assistido.

Amaxon, para um amador, é hostil, hermético; é difícil aceitá-lo. Eu é que estou errado em ter mandado às considerações deles minha pequena obra-prima. Mas a recusa de Cuba, em mim, foi a que causou o maior espanto. Eles podiam até não gostar do filme, talvez, por não entenderem ou se sentirem agredidos com o enorme caralho que avança na mão de uma donzela angelical, numa dança erótica, em direção ao assustado burguês. Ou, quem sabe, chocados com a poesia louca, abstrata e inventiva da criação? Mesmo assim não tinham o direito de excluir um filme que é libertário, e também de vanguarda, e posso até dizer, comunista, pois trata o texto poético do massacre capitalista contra a liberdade de criação de uma escritora, uma artista, encurralada pela vida.

Espero que a cópia em DVD deste filme caia em boas mãos, nos bastidores da burocracia e seja pirateado, para que muitas pessoas, independente da censura dos festivais, possam assisti-lo. Pois, na certa não ficarão imunes ao que ele tem para dizer.

Quanto a vocês, organizadores de festivais estatais do cinema brasileiro, que nunca fizeram cinema, mas que vivem e muito bem dele e estão sempre acompanhados por jovens burocratas da arte, vampiros oriundos das universidades dos picaretas, vips que se espalham pelos brasis afora, viajando como consultores, censores, selecionadores, jurados e professores de oficinas de cinema, que vivem às custas do erário e que são muitas vezes também financiados por fundações estrangeiras e hostis aos interesses nacionais, é preciso que aprendam a respeitar os artistas mais velhos, os que ainda permanecem rebeldes e iconoclastas, mesmo sem compreendê-los, pois eles representam o seu futuro.

Cabo Frio, dezembro de 2009.

José Sette

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Gazeta em forma de e-meio 110 - Especial

Os dois “Pepes” de 29 de novembro

Magistral! É a palavra (com a exclamação) que, na opinião deste gazeteiro, melhor poderia definir a cobertura da TeleSur das duas eleições, melhor dizendo, duas sagas de dois povos tendo por motivo central pleitos presidenciais, ambas importantíssimas para as Américas e o mundo e que se deram domingo passado. Uma no Uruguai e a outra em Honduras. Foi uma aula de jornalismo televisivo da melhor qualidade, e este que aqui escreve, declara, de início, que foi a primeira vez em sua vida que presenciou algo dessa envergadura por televisão, em todos os planos de competência em que podem interatuar o tema e a linguagem: o político, o jornalístico, o intelectual, o profissional, o técnico, o tecnológico, o informativo, o audiovisual e, especialmente, o histórico.

A TeleSur distribuiu bem equipadas e bem preparadas equipes de reportagem nas capitais e em diversos pontos estratégicos do interior dos dois países. Ancorada em Caracas por alguns de seus melhores profissionais de comunicação, muito bem assessorados por analistas e comentaristas do mais alto nível e por uma editoria de pesquisa cuja eficiência e agilidade deixam no chinelo as “grandes” redes mundiais, ela foi capaz de narrar com uma incrível precisão jornalística e com uma impressionante qualidade editorial tudo o que de mais importante, de mais relevante, de maior interesse e de fundamental valor noticioso e informativo ocorreu nas vinte e quatro horas daquele dia histórico, nos dois países, e, praticamente, em tempo real. Demonstrou, assim, que o veículo televisivo, quando utilizado para as suas finalidades mais nobres e essenciais e por uma consciência profissional dedicada, capaz e incorruptível, é uma das mais valiosas ferramentas de libertação através do conhecimento e da informação que a Humanidade jamais teria construído para si mesma. E talvez a mais eficaz.

A História também colaborou enormemente para que os acontecimentos se tornassem mais interessantes e desafiadores ao gigantesco esforço de cobertura a que se propôs a TeleSur e também para que, somente ela, entre todas as demais empresas do gênero em todo o mundo, fosse capaz de enfrentá-lo e vencê-lo com tamanho sucesso.

É que, por uma coincidência sem precedentes, pelo menos até onde pode alcançar a memória deste gazeteiro, nos dois países, situados geograficamente quase que nos extremos opostos do continente latino-americano, e no mesmo dia, aconteceram, em simultâneo, duas jornadas eleitorais de natureza completamente distintas. Dir-se-ia, tal fora o contraste entre os dois acontecimentos, que um era o negativo do outro.

No Uruguai, sulista e oriental, dava-se uma verdadeira festa democrática: era o segundo turno de uma campanha eleitoral que brilhou por suas virtudes realmente democráticas, apesar da desigualdade midiática em favor do candidato derrotado contra o vitorioso candidato das massas populares, apoiado pelo atual governo. E o presidente em exercício, Tabaré Vasquez, deu declarações no local onde votava.

Em Honduras, centro-americana e caribenha, o Império investia todas as fichas que ainda lhe restam de prestígio e força política em Nuestra América numa ditadura que tentava uma farsa eleitoral para se legitimar como “poder democrático”, contra as massas populares revoltadas pelo golpe de Estado que depôs o presidente que elegeram e lhes impôs um estado policial cuja crueldade, estupidez e violência só são comparáveis aos registros mais conspícuos de desumanidade genocida que se conservam na memória histórica das tragédias coletivas. E o presidente deposto, preso na Embaixada do Brasil em Tegucigalpa, ilhada por centenas de militares fortemente armados e com ordens de matá-lo se pisar um pé fora da embaixada, não pôde sequer exercer o direito de votar.

Em comum, nos dois casos, como magistralmente demostrou a TeleSur – com forte impacto mundial que foi capaz até de alterar a agenda da cúpula ibero-americana que se inaugurava também, no mesmo dia, em Estoril, Portugal, e na qual o tema de Honduras estava sendo relegado a planos secundários por inciativa imperial – foi a pujança dos dois povos dos dois pequenos países na luta heróica que travaram, em simultâneo e igualmente inarredáveis no propósito decidido de conquistarem soberania e liberdade.

A grande façanha da TeleSur residiu, principalmente, na competência jornalística de trazer toda a substância da verdade contida nos três parágrafos acima de forma plena e indiscutível. Seus repórteres foram a todas as instâncias do fazer político: movimentos sociais, sindicatos, lideranças de todos os matizes ideológicos e classes sociais, políticos do governo, da oposição e independentes, militares, autoridades e populares de vários níveis hierárquicos e sociais, formando um painél de grande riqueza documental acrescido ainda de material colhido em veículos de mídias comunitárias e alternativas, da mídia hegemônica ou produzido pela própria editoria de pesquisa com vasta iconografia, info-gráficos, filmes de arquivo e o escambáu.

No Uruguai víamos imagens mais comuns ao tipo de evento: muitas bandeiras tremulando, povo nas ruas dançando e cantando lemas e refrões de campanha, agitação nas praças, alegria da vitória e choro da derrota. O carismático líder revolucionário José “Pepe” Mujica, ex-tupamaro, ex-guerrilheiro, preso político por 16 anos, 13 dos quais incomunicável e em regime de solitária, foi o grande vencedor do pleito, com 53% dos votos, contra o oligarca Luis Alberto Lacalle (42%), que, aliás, soube digerir a derrota com a nobreza de um belo discurso de reconhecimento da vitória de seu oponente. Um comparecimento maciço de quase 90% dos eleitores cadastrados auferiu uma legimitade democrática sem precedentes ao resultado do pleito naquele país.

Em contraponto, Honduras vivia uma caricatura pseudo-eleitoral jamais vista em lugar algum. Militares, policiais e mercenários ocupavam as ruas vazias e, se alguma manifestação popular surgisse diante deles, caíam de pau violentamente, atacando-a com jatos de água, bombas de gás, cacetetes e a tiros de bala de borracha e até de balas verdadeiras. Pelo menos um morto, mais de 40 desaparecidos (inclusive crianças) e cerca de três centenas de presos foi o saldo da repressão naquela jornada, dado ainda como parcial por órgãos da resistência e entidades de Direitos Humanos. Os eleitores se recusavam a sair para votar e houve comandos de policiais e de civis armados, os “camisas brancas” (e “calça de qualquer cor”), que os tiraram de casa à força de bombas de gás lacrimogêneo lançadas dentro de seus lares para os levarem às urnas a ponta de fuzil. Desesperados com a abstenção quase total e flagrante, diante de todos os veículos de imprensa presentes, o Tribunal Eleitoral chegou a mudar as regras no meio do jogo e, alegando que não havia mais a tinta indelével com a qual os eleitores deveriam marcar os dedos quando votassem para que não pudessem votar duas vezes, aboliu a necessidade dela, e nisso já passava do meio-dia. Dessa forma, além de facilitar a fraude, neutralizava-se a “manifestação das mãos limpas” que o povo prometia para depois da jornada, exibindo-as, em multidão, à imprensa.

Os comitês de Direitos Humanos que monitoravam por amostragem os locais de votação acusavam uma presença de apenas 17% dos eleitores às duas da tarde, número que subiu para 22% ao final da jornada, mas com denúncias de gente votando até seis vezes na mesma urna e de caminhões e ônibus trazendo salvadorenhos e gualtemaltecos para votarem nas cidades fronteiriças. Pouco antes de fecharem as mesas, a TeleSur mostrou muitas urnas, que eram transparentes, quase vazias. Nenhum órgão idôneo de observação eleitoral aceitou participar da farsa, e os golpistas então convidaram um bando de empresários, mafiosos, narcotraficantes, políticos corruptos, congressistas republicanos dos EUA, lacaios de países diversos, e outras lindezas “democráticas” para exercerem o papelão. Para se ter uma idéia mais amena da qualidade dessa “observação eleitoral”, o “representante” brasileiro convidado foi o deputado federal Raul Jungmann. “Tudo pela democracia!”

Às seis da tarde, Manuel Zelaya falava com a TeleSur por internet e dizia que o Comando da Resistência, através de monitoramento em todas as urnas, verificara um índice de abstenção entre 65% a 70% dos eleitores cadastrados. Os golpistas só apareceram em cena nas primeiras horas do dia, com Micheletti, cercado por vasto esquema de segurança militar, sorridente e exibindo cinicamente para a imprensa o dedo mindinho da mão direita sujo de tinta indelével. Depois, desaparareceram e não eram encontrados em lugar nenhum. Nem os candidatos que aceitaram participar da farsa eram vistos nas ruas ou encontrados pela imprensa. Simplesmente sumiram.

As matérias produzidas na praça em frente ao Tribunal Eleitoral eram feitas por repórteres solitários; não havia uma alma nas ruas de Tegucigalpa, que era um deserto já às oito da noite. Os golpistas só apareceram novamente depois da meia-noite, numa sessão do Tribunal Eleitoral, que mais parecia um velório, para informar à imprensa e “ao mundo” que as eleições foram um “êxito total” com o “comparecimento maciço do eleitorado”, o qual alcançara 61% de presença nas urnas, fato inédito naquela república de bananas, onde o máximo até hoje alcançado foi de 55% dos eleitores na eleição de Zelaya, em 2004, e que, pelas imagens de arquivo exibidas pela TeleSur, transformou Honduras numa só festa popular, com o povo todo vestido de vermelho inundando as ruas de Tegucigalpa e das cidades do interior. Pouco depois daquela “sessão maldita”, o Tribunal declarou a “vitória” de Porfírio “Pepe” Lobo, um empresário mafioso local, com 38% dos “votos válidos”, sem contudo dizerem quantos eram esses votos.

Imediatamente após o comunicado, esse tal “Pepe” recebeu os parabéns e o reconhecimento da sua vitória eleitoral, “pela livre e soberana escolha do povo hondurenho e dentro da mais absoluta normalidade democrática”, por parte dos EUA, Israel, Colômbia, Costa Rica e Panamá, ou seja, quase todo o “eixo do bem”.

Mas de tal “êxito”, eles, os golpistas, os seus mentores e os seus “eleitos”, não têm foto, não têm vídeo, não têm festas, não têm testemunho idôneo. Só o que possuem são as fraudes inconstitucionais, descaradas e falsificadas, desde a célebre “carta de renúncia” de Zelaya, os encômios de seus próprios e desacreditados veículos de mídia, e... a Quarta Frota, esta, sim, como diria o velho Sette de Barros, “um argumento de peso”.

Quanto ao “Pepe” uruguaio, cercado por centenas de milhares de seus compatriotas em meio a festejos e foguetórios até altas horas da madrugada em Montevidéu, debaixo de uma chuvarada, desses países que se proclamam exemplos de democracias, nem um “boa sorte” recebeu. Mas a internet foi inundada de mensagens de congratulações por parte das democracias do mundo, encabeçadas pelos países da Alba e América Latina.

No excelente programa de fechamento do intenso dia de trabalho da TeleSur, moderado pela bela e inteligente Patrícia Villegas, e com a participação de vários escritores, intelctuais, jornalistas, artistas e políticos das três Américas e até de Eduardo Galeano, que ainda há pouco tempo se recusava a dar entrevistas a televisões, numa síntese das imagens do dia e nos comentários lúcidos de todos concluiu-se que aquele fora um dia de grande vitória popular nos dois países. E ontem, segunda-feira, Tegucigalpa foi completamente ocupada pelo povo em uma imensa passeata na qual o Comando da Resistência proclamava a sua vitória pela abstenção popular e o não reconhecimento das eleições, as quais considerava um “novo golpe de Estado”. A luta continua.

A Gazeta agradece, TeleSur, e dá os seus parabéns pelo trabalho. Magistral!.

sábado, 28 de novembro de 2009

Gazeta em forma de e-meio 109

Reflexões do gazeteiro (VII)

Dois fatos

Primeiro

O Observatório da Imprensa publicou um pequeno artigo sobre a queda nas vendas dos jornalões brasileiros. Enfim, um assunto que há meses frequenta os principais sites de opinião na internet com a abordagem do mesmo problema em vários países dos quatro cantos do mundo chega ao Brasil, ainda que neste tímido informe, que, por sinal, é restrito às vendas avulsas da mídia impressa, nas bancas de jornais.

A Folha de São Paulo, considerado um dos três jornais mais influentes no Brasil, vendeu, em média, apenas 21.849 exemplares nas bancas de todo o país, entre janeiro e setembro de 2009 (dados do IVC – Instituto Verificador de Circulação; portanto, “deles” mesmos). Para um jornal que, em 1995, vendia nas bancas 830 mil exemplares num só domingo, e, somando-se aos assinantes, chegou a tirar 1.253.000 exemplares diariamente, na média de outubro de 1995, a atual tiragem, que não deve ultrapassar insignificantes 50 mil exemplares, se incluirmos os assinantes e as cortesias, o que significaria, senão a sua falência enquanto mídia impressa?

Ora, nos critérios da ortodoxia neoliberal que esse mesmo órgão de imprensa e seus semelhantes pregam e defendem com tanta ênfase e entusiasmo já deveriam todos ter sido encerrados há muito tempo, se considerarmos que o que ocorre com a Folha estaria ocorrendo com todos os jornalões (por que não?). A Gazeta então faz a pergunta que o Observatório não fez: quem os sustenta como empresas comerciais que são? Com certeza não será o amor ao jornalismo impresso. Muito menos a publicidade veiculada por empresas privadas; os donos delas não são otários. Ah, a internet: já vimos uma argumentação do tipo por aí, sem fundamento nenhum, claro. Dizem que agora os jornalões têm muito mais leitores que antes, graças à internet. Mesmo se isto fosse verdade, então, para quê imprimir jornais que não vendem?

A triste verdade, leitor, é a de que nós, o povo, sustentamos o trampo. Da câmara de vereadores de Quixeramobim ao Palácio do Planalto, persiste o velho sistema: as faturas das matérias pagas com dinheiro público devem vir acompanhadas das respectivas matérias impressas para que o processo de pagamento se faça. Ninguém pergunta quanto custam, ninguém questiona por que se as pagam. Uns poucos, sim, sabem quanto custam e sabem por que se as pagam; seus rabos (e “interesses particulares”) estão presos no sistema. A quem a mídia impressa de hoje informa é à burocracia pública que a sustenta, pois os leitores já se foram há muito tempo, e o jornalismo que a justificaria há ainda muito mais tempo está morto. Um morto “muito vivo”, decerto!


Segundo

Mario Silva, jornalista venezuelano, disse anteontem em seu programa de TV La Hojilla (“A lâmina” ou “estilete”, em traduções livres, referindo-se, porém, ao instrumento de recortar matérias de jornais, para o que se usava geralmente uma gilete), que, pela primeira vez em toda a história, se verificava concretamente a mudança do poder midiático numa nação americana, e os meios de imprensa privada da Venezuela não mais impõem as matrizes de opinião naquele país. Agora são os meios independentes e comunitários, junto aos veículos do governo, que asseguram a maior parte das audiências, específica e esmagadoramente, nas classes populares, e promovem por si mesmos as matrizes de opinião independentes e de interesse nacional. Todos esses meios de comunicação são sustentados pelo povo da Venezuela, através de seu governo revolucionário, com a diferença que atuam numa linha editorial radical e abertamente anti-imperialista e em favor das massas populares, dos objetivos libertários dos povos do mundo em geral, e dos povos latino-americanos em particular.

La Hojilla foi o precursor de uma série de programas de opinião veiculados nesses meios de comunicação revolucionários que, de uns cinco anos para cá, são produzidos para contestar e rebater as matrizes de opinião forjadas pelos meios privados contra-revolucionários da Venezuela, os quais são ostensivamente apoiados pela mídia hegemônica mundial, vinculada aos interesses imperialistas e às transnacionais.

De acordo com Mario Silva, agora são os veículos da mídia privada que se subordinam aos temas veiculados pelos meios públicos. E os programas como os dele - que é hoje o programa de grade de televisão com maior audiência nacional -, fazem as tréplicas.

Para além dos índices de audiência que agora, indiscutivelmente, detectam a mudança do poder midiático na Venezuela, um exemplo claro de tal verdade foi verificado no caso das bases militares dos EUA na Colômbia, assunto de que o povo venezuelano demonstrou estar a par nos mínimos detalhes e com grande consciência patriótica, graças à competência jornalística dos meios públicos para informá-lo. Assim, ao responder de imediato e em uníssono ensurdecedor ao apelo de Hugo Chávez para que “se queremos a paz, preparemo-nos para a guerra”, tamanha contundência de resposta popular pôs em polvorosa os meios de comunicação imperialistas e os estrategistas do Império, que, pegos de surpresa, tentaram implantar a matriz de opinião de que Chávez estava declarando guerra à Colômbia. Isto só fez aumentar o descrédito dos próprios meios que a veicularam, dada a estupidez flagrante e sem o menor fundamento de tal manipulação da verdade. É possível que tenha se dado justamente aí, nesse mesmo fato, o ponto de inflexão mencionado pelo jornalista de La Hojilla.

Ao poder comunicacional revolucionário construído pelo povo bolivariano da Venezuela em menos de uma década, se agrega a TeleSur, a caçula da família dos meios comunicacionais da Revolução, que já se faz numerosa e influente. A TeleSur foi criada para o embate midiático no plano internacional e hoje prospera francamente na mesma direção, só que em escala mundial, através da luta heróica que está travando contra a mídia hegemônica. Numa entrevista ao jornal argentino Página 12, Andrés Izarra, presidente da TeleSur, comentou que o golpe de Estado em Honduras foi midiaticamente planejado para se fazer quase em silêncio. No máximo, disse Izarra, apenas na mídia impressa algumas notas de páginas de miolo informariam da destituição do ignóbil Manuel Zelaya pelas “forças da democracia” daquele país. Não contavam com a presença ali, solitária e resistente, da equipe TeleSur a qual, durante o golpe e nos primeiros quinze dias que o sucederam, transmitiu ao mundo reportagens de alta qualidade sobre a verdade histórica e a forte resistência popular anti golpista.

Pela corajosa batalha daqueles dias, a TeleSur foi ganhando elevados índices de audiência em todo o mundo (passou de 23 para 100 milhões de espectadores em poucos dias) e rompeu o bloqueio midiático. A mídia hegemônica teve de correr atrás do prejuízo e enviar suas equipes, mas, até que chegassem lá, não tiveram outra saída senão comprar as imagens da TeleSur, a única equipe jornalística presente nos fatos capaz de gerar material de qualidade televisiva. A CNN, a BBC e até a Globo, do Brasil, que sempre a sabotaram, não tiveram alternativas senão a de publicar imagens com créditos TeleSur.

E o mundo todo está em xeque de transparência política e democrática por causa da pequena Honduras. Os golpistas e seus mentores tentam se esconder de si mesmos, fingindo que não está acontecendo nada... há cinco meses! Nesse tempo, não puderam governar, de fato, nem um só dia, por causa da “inesperada” resistência popular, cuja existência foi a TeleSur, e somente ela, que comunicou ao mundo em primeira mão, num dos maiores “furos” de reportagem internacional jamais registrados.

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Os dois fatos são ilustrações e prólogos das nossas próximas reflexões. A oitava, sobre a morte do jornalismo tradicional nos últimos quarenta anos (1969 – 2009). E a nona e última da série, sobre o renascimento de jornalismo original através de uma nova e revolucionária prática jornalística e das novas tecnologias a que os profissionais de jornalismo tivemos acesso.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Gazeta em forma de e-meio 108

Intervalo necessário

Nesta edição, vamos interromper a sequência de reflexões que vimos publicando para dar vazão a uma série de denúncias que se vão acumulando em nossa caixa de entrada. Em princípio, a Gazeta considera muito pequena a contribuição que pode dar para a difusão de tão graves denúncias, que merecem espaços bem mais importantes e eficazes para se concretizarem como tais e promoverem as consequências que requerem. Mas, visto que, por mais graves que sejam, elas não ressoam nem repercutem em lugar algum – pois não nos retornam por nenhuma outra via, é como se caíssem num doloroso vazio de silêncio, na covarde e vergonhosa omissão generalizada, o que, de certa forma, demonstra a nossa tese da morte do jornalismo na mídia hegemônica –, a Gazeta se vê na obrigação de difundi-las com seus parcos recursos a seus poucos leitores, mais acreditando na força destes do que dela própria, uma vez que são leitores que valem por dez ou mais na formação da opinião de resistência e da consciência sobre os valores que realmente precisam ser defendidos e relevados. Comecemos pelas mais recentes.

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O artista plástico Gilberto de Abreu vem nos enviando notícias sobre o cruel assassinato do bailarino Igor Xavier, há quase oito anos, e a infame impunidade de que ainda gozam seus assassinos, que confessaram terem torturado e matado o jovem artista por pura homofobia. Não chegamos a conhecer o trabalho dele, mas, pelo material divulgado no blog a ele dedicado (http://igorvive.blogspot.com/), nos parece que era um talento que levava a sua estrela, e prometia contribuições importantes à arte da dança, algumas das quais já estavam em curso. O caso é escabroso e humilha a Justiça brasileira, hoje, mais que nunca, refém dos poderes econômicos, políticos, oligárquicos e discricionários que fazem dela o que quiserem graças à anuência cúmplice do silêncio midiático. Dia 17 próximo (amanhã), às 20 horas, no Teatro da Assembléia Legislativa de Minas Gerais, em BH, será realizado um espetáculo-denúncia com a participação de vários artistas indignados com o tenebroso assassinato, em protesto pela situação de impunidade dos assassinos e solidários com os familiares do artista. A Gazeta comparecerá.

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Maria Tereza Corujo, que, com um grupo de resistentes, lidera um combativo movimento de preservação da Serra da Piedade, nos enviou um excelente dossier do esforço hercúleo que levam a cabo contra poderosas mineradoras para impedi-las de continuarem o trabalho de destruição que vem desfigurando a geografia do nosso estado e ameaça gravemente mais este patrimônio que, além de natural, é cultural e valiosíssimo para a história e as tradições do nosso povo. A Nossa Senhora da Piedade, a nossa pietá, folclórica, lendária e religiosa, é, nada mais, nada menos, que a padroeira do estado de Minas Gerais. Esse atentado sem piedade contra a Serra da Piedade – cujas linhas formosas já inspiraram uma composição de Villa-Lobos e, junto com o belo conjunto arquitetônico da ermida barroca construída no século XVIII, formam um cenário que vem inspirando um sem número de pintores, aquarelistas e desenhistas de diversas épocas e procedências –, se constitui num outro tipo de assasinato que precisa ser denunciado com veemência. Infelizmente, parece que ainda não há um site onde os leitores da Gazeta possam conhecer o belíssimo material divulgado em pdf, e o arquivo é muito grande para ser enviado por este e-meio. Assim, a Gazeta publica o e-mail de Maria Tereza para que os interessados o solicitem diretamente: tespca@gmail.com.

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O filme mais recente de José Sette, Amaxon, que tem sido muito elogiado pelos poucos que tiveram o privilégio de assisti-lo e tem causado grande expectativa pelo seu lançamento, foi recusado para o Festival de Cuba. Até aí nada de mais, nada de novo. Rogério Sganzerla já reclamava desse “bloqueio de Cuba” para o cinema brasileiro de invenção. Um cinema que, nos espaços mais destacados da arte cinematográfica em todo o mundo, sempre despertou grande interesse. Mas agora que o stalinismo perdeu força na Ilha graças à influência da Revolução Bolivariana da Venezuela, que promove uma abertura sem precedentes para as manifestações artísticas independentes, cabe a denúncia de que o “bloqueio” se mantém exclusivamente em nosso território, onde nada muda, ainda que os tempos e as coisas mudem radicalmente em toda a América Latina. São os mesmos de sempre – os responsáveis pela mesmice crônica de que padece o cinema nacional –, que filtram o material que pode ou não ser exibido em Cuba ou na Venezuela. É a caretice udenista das “esquerdas” acomodadas no poder desde a ditadura e que permanecem muito à vontade em diversas instâncias petistas de decisão. Isto sim, precisa mudar com urgência, e a Gazeta promete voltar ao assunto e bater nessa tecla com mais informações e denúncias.

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Uns tempos atrás, este gazeteiro, por razões de ordem pessoal, não pôde atender a um apelo de Beto Almeida para que a Gazeta se envolvesse numa polêmica que andava rolando pela internet sobre a atuação da Fundação Ford no Brasil. Muito antes disso, numa das primeiras Gazetas, denunciamos o papel “cavalo de tróia” dessa entidade pseudo cultural gringa, a qual não passa de um braço do Império com a missão de destruir a cultura brasileira e latino-americana. Tal missão nunca foi desativada. Se na década de 1970 ela se constituía numa espécie de censo detalhado das manifestações culturais de resistência que se espalhavam por toda a América Latina, em particular no Brasil, agora ela se infiltra nessas manifestações com o pretexto de ajudá-las financeiramente. Uma vez aceita tal “ajuda”, o que é natural dada a pobreza e o descaso pelas instituições públicas de que são vítimas os nossos espaços de resistência e de produção cultural, começa a chantagem dos novos “donos da bola” no sentido de descaracterizar as essências culturais verdadeiras desses espaços e fazer aguar ou diluir o potencial revolucionário deles. Isto está acontecendo neste exato momento e em plena luz do dia! Temos bons e novos aportes para o tema, mas parece que a polêmica murchou. De qualquer forma, estamos aí, Beto.

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Gustavo Gazinelli, militante entre os mais ativos do Movimento de Preservação das Serras e Águas de Minas, voltou aos bons tempos de militância estudantil, os tempos do “Geléia”, quando interrompeu a demagogia do governador Aecinho, no Palácio das Artes, para espinafrar contra a política entreguista do Estado e contra a censura na imprensa, que aqui vem sendo exercida com mais intensidade do que na época da ditadura militar. O sorriso amarelo e hipócrita do governador enquanto ouvia a descompustura do Geléia denuncia com clareza que ele nunca foi herdeiro político de seu avô, Tancredo. O pai dele, Aécio Cunha, uma das figuras políticas mais daninhas e mais representativas da oligarquia udenista ultra reacionária de Minas Gerais, é a fôrma exata da herança política do atual governador. Veja a intervenção do Geléia no endereço http://www.youtube.com/watch?v=IN8M91IagNM (só faltou a famosa gargalhada).

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segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Gazeta em forma de e-meio 107

Reflexões do gazeteiro (VI)

O “sonho americano” é o pesadelo de todos os povos do mundo, inclusive dos que vivem nos Estados Unidos. (Ricardo Arturo Alvarado, escritor e jornalista hondurenho, in Rebelión, 6/11/2009)


1909-2009. Neste intervalo de tempo histórico (centúria) vamos eleger o ano de 1969 como um ponto de inflexão. Por quê? Nos artigos anteriores, quando nos referimos à Primeira e à Segunda Revolução Industrial, estávamos falando da vertente civil de todo um processo histórico no qual tiveram importantes papéis a imprensa e o jornalismo. Mas a informação como uma arma de guerra é tão antiga quanto a Humanidade e, desde Tucídides, há registros de sua manipulação para finalidades bélicas. Contudo, na chamada Era Moderna, desde a Renascença européia até o ano de 1969, é possível verificar-se a nítida separação entre as vertentes civis e militares dos progressos científicos e tecnológicos que nela se concretizaram.

A própria gráfica de Fust e Gutemberg nasceu em 1452 com fins pacíficos, e não bélicos (é preciso nunca esquecer o importante papel de Fust; ao que parece, o sufixo que leva o nome de seu parceiro impressiona mais a certos historiadores). Também o fundador da aeronáutica do século XX, Santos-Dumont, reivindicou os propósitos pacíficos de seu empenho e repudiava o uso bélico de seus inventos.

A queda de braço entre o jornalismo e o grande capital nos idos de 1908-1909, que na penúltima Gazeta comentamos, pode ser considerada como o início de um processo que culminou em 1969. Este curto espaço de tempo histórico, de apenas 60 anos, se tornou o epílogo do poder civil sobre a imprensa e o jornalismo e, ao seu término, se registra a definitiva incorporação de ambos ao arsenal militar do capitalismo liderado pelos EUA – o “sonho americano” –, que ali entrou em sua fase mais arrogante ao estabelecer como inimigos todos os povos que resistiam ao seu domínio ou lhe recusavam obediência, isto é, neste atual e exato momento, todos os povos do mundo, inclusive os dos EUA.

Muitos são os fatos históricos que marcam aquele ano como ponto de inflexão desta nossa atual e cruel realidade. O mais notório deles, e que se inclui perfeitamente no espírito das reflexões da Gazeta, é a célebre “viagem do homem à Lua”, no ano de 1969, seguida de algumas outras até o ano de 1972.

Por diversas razões estritamente lógicas, o homem nunca foi à Lua e a maior delas não estaria no fato de a NASA ter “perdido” todos os documentos que comprovariam tais viagens. Nenhum homem nunca viajou até a Lua pela razão simples e elementar de não possuir a Humanidade meios (tecnologia) para fazê-lo, nem mesmo atualmente; muito menos há quarenta anos. Há muito que evoluir em nanotecnologia, telemetria laser, computação, robótica, automação, eficiência de combustíveis, infra-estruturas espaciais nas órbitas da Terra e da Lua, entre muitas outras tecnologias, para que este “sonho” se torne realidade. Considerando ainda a relação entre o enorme investimento exigido para a viagem e a posição dela na lista das prioridades humanas, podemos dizer que muito tempo vai se passar antes que se realize, se é que se realizará mesmo.

A URSS, que na época detinha a mais avançada tecnologia espacial (e ainda mantém, na Rússia, a liderança da chamada “corrida espacial”), enviou, naqueles mesmos anos, uns pequenos robots ao nosso satélite, alguns deles que foram capazes de enviar para a Terra minúsculas cápsulas com amostras do solo lunar. E isto era tudo o que podia fazer a Humanidade para explorar a Lua, mesmo assim com muitas perdas e desperdícios de tempo e de recursos de toda ordem, sem contar os notáveis fracassos e erros verificados, todos inadimissíveis para o caso de envolvimento de seres humanos nessas aventuras.

A China, que atualmente produz importantes avanços em tecnologia espacial, extrapola para o ano de 2030 a eventual conquista de viabilidade tecnológica para que se realize uma primeira viagem tripulada ao nosso satélite natural.

A própria NASA, que até agora tem colhido mais sucessos de propaganda do que de realizações efetivas, e que, além de colecionar contundentes fracassos e tragédias, há quarenta anos afirmou ter viabilizado as tais “viagens” em menos de um ano, acaba de anunciar um ambiciosíssimo “programa” para “retornar” com seus homens à Lua... para “depois de 2020”!

Assim também, como já vimos, nenhuma aeronave mais pesada que o ar voou antes de 1908, pela simples e elementar razão de que foi neste ano que a primeira aeronave do mundo o teria feito. A diferença é que a sociedade civil de então era bem informada por uma imprensa e um jornalismo verdadeiros e não engoliu a tentativa de engodo; e a de 1969 já não possuía mais imprensa nem jornalismo e, desde ali, somos obrigados a engolir todos eles (os engodos e suas “criações”), os do passado e os do presente: os irmãos Wright, o “holocausto”, a viagem à Lua, a demolição de três megaedifícios pelo choque de aeronaves de passageiros em dois deles e o “inquérito oficial” do governo dos EUA sobre este evento, que relata e leva em conta até conversas por telefones celulares de passageiros daqueles aviões com seus familiares em terra. Tais conversas nunca ocorreram, pela simples e elementar razão de que em 11 de setembro de 2001 não havia nos EUA tecnologia que as permitissem, e isto não é a Gazeta que está dizendo, é o FBI que o afirmou em seu próprio site na internet.

Nos últimos 40 anos este gazeteiro, que teve boa parte de sua formação de gráfico por entre as ramas, os componedores, os prelos e os cavaletes de tipos móveis da oficina tipográfica Eletrogravura, em BH, sob a orientação de mestre Ildeu, tipógrafo classe A, viu evaporarem-se, em poucos anos, mais de cinco séculos de evolução daquela arte e daquela técnica, ambas até então consideradas como ícones de elevação do saber e da condição humana, em seus aspectos mais nobres, civis e civilizados. Em pouco mais de uma só década, os cerca de noventa profissionais que ali trabalhavam na faina ininterrupta de compor manualmente a maioria dos textos que eram publicados nas gráficas da cidade, muitos deles por toda a vida e até por tradição familiar de várias gerações, se viram sem ter nada mais que fazer depois da completa obsolescência de seus ofícios, mistéres e mistérios. Em 1986, este mesmo gazeteiro protagonizou o evento que pode ter significado em nosso país o golpe de misericórdia na tipografia tradicional: a edição do primeiro livro feito no Brasil inteiramente por computador, na oficina Lastri, de São Paulo, para a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Ah, sim, os computadores... eis que, para a estratégia militar eles são uma verdadeira obsessão; nunca antes se havia produzido uma ferramenta tão eficaz para exercer controles, todos os controles, inclusive os da opinião pública. O computador gráfico das oficinas Lastri, em 1986, ocupava uma área de quase 100 metros quadrados e custava uma verdadeira fortuna. Somente as grandes empresas e corporações multinacionais, além das Forças Armadas e os órgãos de governo, podiam possuir tal equipamento.

E a imprensa alternativa, que se tornara o refúgio dos verdadeiros jornalistas na década de 1970 graças ao artesanato gráfico-tipográfico das pequenas oficinas, desapareceu completamente, junto com elas. Os senhores da guerra se tornaram então os senhores absolutos de tudo o que se publicava por qualquer via comunicacional, uma vez que também os meios eletrônicos de rádio e televisão se vincularam a tais máquinas, que eram inalcançáveis às tarefas comunicacionais de resistência.

Mas, como no passado já se verificara, e o anotamos numa dessas Gazetas anteriores, eis que chega a História e prega uma nova peça à ambição desmedida dos poderosos senhores da guerra, seus banqueiros e seus capitães-de-indústria.

É o que veremos na próxima edição da Gazeta.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Gazeta em forma de e-meio 106 - Especial

No contexto das reflexões do gazeteiro

Acabo de receber o texto jornalístico-crítico que reproduzo integralmente logo em seguida a esta introdução. Ele reflete um tipo de jornalismo a que estávamos habituados a frequentar nas páginas dos grandes jornais nas décadas de 60/70, e que hoje só é possível encontrar em certos sites da internet ou em publicações alternativas de pouca ou insignificante audiência. É o verdadeiro jornalismo, substanciado em conhecimento, inteligência, domínio da arte, interesse no fato, opinião independente e preocupação em bem informar o leitor. Não há mais esse tipo de jornalismo na mídia hegemônica. Eis porque são vários os bons autores que vêm tratando o assunto da morte da “grande” imprensa, como já assinalamos antes.

Neste caso, trata-se da crítica de um filme que, naquela época, estaria em cartaz em grandes casas de cinema - o leitor já o teria visto ou poderia vê-lo no mesmo dia, se quisesse, e, concordando ou não com as opiniões do jornalista, o certo é que estava servido de uma informação de alta qualidade sobre o fato cinematográfico em questão. Ainda no caso, este gazeteiro teve acesso ao copião do filme quando em fase final de montagem, antes da estréia dele no último Festival de Inverno de Ouro Preto, a que não pôde estar presente, e concorda desde já com as opiniões do crítico, mesmo que ainda não conheça a fatura final da obra.

Mas, também, não há mais os cinemas, enquanto grandes casas de espetáculos; o que há são salas ou saletas, em geral dentro de shopping centers, e a maioria incapaz de realizar uma boa projeção. Ademais, tais filmes jamais serão exibidos nelas, exceto em raríssimas exceções. A última vez que este gazeteiro esteve em uma delas, teve de deixar a sessão no meio, pois agora é comum pessoas entrarem nessas saletas com um balaio de pipoca de micro-ondas e um balde de coca-cola. O barulho da ruminação e o fedor no interior da sala tornam a sessão insuportável, seja o que for que estiver sendo projetado na tela. Como agora temos os DVDs, é preferível ver os bons filmes no recolhimento protetor da nossa própria toca.

O texto que se segue, por si só, enquanto tal e como texto jornalístico, mesmo que o leitor muito longinquamente ou por muita sorte possa um dia ver a obra cinematográfica de que trata, ainda assim a divulga, e, de certa forma até a difunde através da linguagem literária intrínseca ao bom jornalismo. Além do que, está no contexto desta sequência de reflexões da Gazeta e se insere perfeitamente, em modo não linear, no pensamento que aqui desenvolvemos. Ei-lo:

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AMAXON, UMA ODISSÉIA NA CRIAÇÃO PENSADA

Em memória de Jairo Ferreira

“ Uma coisa são sempre duas: a coisa mesma e a imagem dela. ”
(Carlos Drummond de Andrade)

Talvez tenhamos nos transformado nessa máquina horripilante de negação dos sonhos! E no que trituraram todas as singularidades, fomos transformados num exército de múmias, de burocratas, de deslumbrados e idiotas. Uma nova encenação do que seja, não pode ser mais uma condenação à nociva prostituição, achatada à TV. Deve-se ousar na desarmonia, do desnudamento da carne e do abandono na subjetividade. Ora, se o cinemão se realiza sem subjetividade criativa alguma, a nós deve interessar fundamentalmente uma nova linguagem gerada na teatralização de transcendências. Acrescente-se a isso que o país vive do seu esvaziamento há 509 anos, e mais programadamente há 45 anos. Ou seja, desde o golpe militar de 1964. Ora, como purificar artesanalmente esta quantidade infindável de urina e excremento?

AMAXON é um esforço poético-radical, para nos fazer pensar na complexidade do processo criativo. Ora, de que nos adianta fazer trabalhos de encomenda? Cinema virou filminho publicitário? O que muda nessa falência global de desencontros? O mundo hoje, visto pela TV, é só o lixo como mercadoria de quinta categoria, obviamente espetacularizado. Putas e canastrões são vendidos como profundos e sensíveis. Mas a quê? A “nota”? José Sette vai no sentido contrário de tudo e todos, elaborando com o seu quinto longa-metragem uma projeção de palavras a serem pensadas, fazendo um delicado filme que dá representabilidade a um pensamento sombrio expressivo, nessa sua transfiguração da normalidade do processo de criação. Sette vai aos extremos, numa escalada implacável rumo a uma poesia ainda que delicada, difícil para o grande público, todo condicionado a Hollywood e a TV.

AMAXON é o hospital-Brasil, em que todos somos condenados. A personagem da escritora reage ao internamento e tratamento, e se debate com uma coragem incrível. A linguagem do filme atravessa uma infinidade de vísceras, infernos e imaginações. A carne viva exposta, torna-se uma espécie de gozo trágico. Um filme-dor que nos remete ao teatro de Artaud. Incômodo aqui. Indizível ali. Longe e próximo de todos nós que sobrevivemos ao apocalipse de 1964. Não poderia ser um filme diferente. Foi difícil não apodrecer junto e continuar sonhando com um Brasil mais justo, humano e para todos.

Ainda assim, salvaram-se os poetas e os artistas. Vera Barreto como escritora é uma espécie de víscera exposta, sendo recolhida para continuar a ser demasiadamente humana.

Pouco importa que não seja um filme fácil, ou para muitos. É cinema! Um cinema que emerge de toda essa putrefação de 1964 a 2009. Sette trabalha com precisão a sua não-linguagem fácil, pois lhe interessa mais um fluxo poético de contradições gramaticais voltadas para o pensamento profundo e o cinema autoral. É o velho-jovem cineasta independente que agiganta sua escritora na solidão e na coragem de não ser comum. Que entre só sofrer e morrer prefere escrever enfrentando os seus muitos demônios. Que lê, bebe, fuma... se debatendo entre contradições geradas na TV, por um jornalista que, como todos, espetaculariza o caos ameaçando com a onda gigantesca, definitiva. Onda que até é mostrada, mas que não chega pois é apenas uma manipulação da comunicação, do dinheiro e da morte que sempre nos acompanha.

E se a representação do mundo e da política se tornou imbecil, compete à arte transformar todo esse excremento - numa espécie de teatralização de uma “escrita física” que Vera Barreto faz muito bem - num trabalho raro e exemplar, onde se realiza em sua intimidade frente à insatisfação da obrigação: a do livro de encomenda que precisa ser escrito. E uma vez mais, o conceito de subordinação ao dinheiro como a arte-terapia dos tantos e tantos eletrochoques de nossas vidas. É onde os porcos se acham mais fortes.

Entre livros e copos de vinho, em sua solidão, pensa na grande onda da sua insatisfação. A onda que está fora está dentro e desencadeia contradições levando-a nua aos seus próprios limites grandiosos de exposição poética. É uma escritora, mas é também atriz e mulher. E, ao entregar-se às suas pulsões transforma-se em crítica de si mesma, ainda que aguçando o seu desprezo pela “lógica” imperceptível da mercadoria e do consumo. O sistema sabe bem o que faz; se não tivermos um mínimo de sonhos, seremos transformados em imagens despotencializadas e vazias. A TV não faz isso todos os dias?

Sette não faz um cinema-coisa, a logo ser esquecido ou descartado. Nesse ponto aproxima-se de Tonacci, Sergio Santeiro, Eliseu Visconti, Jorge Mourão e da nova geração. Se “o mundo é apenas engano”, como afirmava François Villon, AMAXON o subverte desprezando o patamar qualitativo do sucesso fácil. Arbitrário como postura, investe no estilo insurrecional como ruptura e negação do obscurantismo avançado da domesticada política cultural do governo, seja lá de que partido for. E não são todos iguais lutando apenas pelo poder? Se a chantagem e o obscurantismo servem ao poder, de nada serve um cinema não idiota, essencial à representabilidade de uma vanguarda que não conseguiram matar. E que hoje convence muito mais que no passado.

É preciso frisar a importância de um filme feito do nada e que não se reduz à razão, que tudo tenta explicar. Neste sentido, reintroduz no cinema brasileiro complexas subjetivações necessárias ao crescimento de um público menos contaminado por partidos, por prostíbulos e pela TV, pois transgride permanentemente a ordem como instituição sagrada. A Sette e sua equipe interessa abandonar o manicômio das disciplinas do certo e do errado, sem sacrificar mais nada. Ao seu cinema interessam as diferenças e os deslocamentos possíveis, como acesso a um permanente ultrapassar-se. Sua trajetória é impar no nosso cinema. É um experimentador muito além do buraco negro em que transformaram o cinema brasileiro, e que fez um novo filme de uma lucidez atrozmente insuportável.

Sette torna profundo e feminino o discurso da personagem da escritora, e com suas imagens poderosas desfaz o território pouco ou nada significativo da TV, pois faz CINEMA! Dá significação a um novo olhar. Enfim, produz intensidades poéticas.

AMAXON são pedaços restituídos a um corpo, ainda que amordaçado pelo tempo, que passa para todos, poderoso e uma vez mais agigantado, pois se assume, indo além da representação e da escrita. E a vida que não deveria ser pobre e empobrecida como é torna-se gozo por parte de todos. Filme infinito ao reinventar a criação simbólica imperfeita. Ainda bem.

José Rosemberg Filho, Rio, 2009. (*)

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(*) publicado no site Via Política: http://www.viapolitica.com.br/principal.php

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Gazeta em forma de e-meio 105

Reflexões do gazeteiro (V)

A fraude caminhou com dois objetivos: neutralizar as vitórias de Santos-Dumont e criar um fato novo que viabilizasse o privilégio das patentes em nome dos fraudadores. Foi relativamente bem sucedida no início, mas a História, como veremos, lhes pregaria uma peça. Pelo que conhecemos das histórias da imprensa e do jornalismo, aquela fora a primeira grande tentativa de manipulação da verdade através da imprensa jornalística.

As histórias da imprensa e do jornalismo são disciplinas distintas; porém, naquele momento viviam numa profunda inter-relação transformadora. O jornalismo heróico que começara nas antigas gazetas jogara um papel importantíssimo em todo o decorrer do século XIX em favor das causas libertadoras em quase todo o mundo, e entrou no século XX gozando de tanta credibilidade e de tal reputação que mal conseguia atender uma pequena parte da crescente demanda dos que queriam desfrutar de sua produção. Nessa fase heróica, o jornalismo era produzido artesanal ou semi artesanalmente e, desde as primeiras e bem sucedidas gazetas, vivia exclusivamente de seus leitores e assinantes. Gente muito exigente, por certo, e que não pagava para ler bajulações a poderosos, para ser enganada ou para perder tempo com inutilidades.

Em nossa América multiplicaram-se os grandes exemplos como os de Bolívar e sua “artilharia do pensamento”, o Correo del Orinoco, diário anti imperialista lançado em 1818 e que contribuiu decisivamente para a expulsão definitiva do império espanhol; os cabichuy paraguaios, editados e publicados nos fronts de batalha, que infernizavam as forças da “tríplice vergonha”; e O Sentinela do Serro, que Teófilo Otoni fazia imprimir em sua gráfica ambulante em lombo-de-burro levantando Minas contra as tropas de Caxias pela causa republicana. Estes são apenas três entre os milhares de jornais que se propagavam pelo mundo afora alçando os povos pela liberdade e cristalizando uma nova forma de comunicação de alta eficiência e rapidez que pôs em polvorosa os poderes imperialistas e absolutistas, participou ativamente da derrubada de muitos deles e ajudou a consolidar importantes forças populares, libertárias e revolucionárias.

No início do século XX, pode-se dizer que, depois da aeronáutica, foi a imprensa, entre as atividades produtivas humanas, a maior responsável pela Segunda Revolução Industrial, que ali apenas se iniciava. E tal avanço tecnológico se daria, pela primeira vez na história da imprensa, para atender as demandas criadas na fase heróica do jornalismo. Na célebre exposição de Paris, em 1900, Hipólito Marinoni, o mais prolífico inventor de máquinas gráficas da época, apresentou o protótipo da maior e a principal de suas últimas invenções: a impressora rotativa de jornais. Em 1903, quando Santos-Dumont fazia vôos rotineiros nos céus de Paris com seus dirigíveis, o Petit Journal, de Paris, tornou-se o primeiro órgão de imprensa do mundo a instalar uma rotativa Marinoni em suas oficinas. Começava a fase industrial da imprensa jornalística. E, com ela, o poder do grande capital sobre o jornalismo e a informação para as massas.

É neste contexto que se insere o oportunismo dos capitalistas norte-americanos, ali representados por John Rockfeller, Gordon Benett e o embaixador Henry White, em conluio com a ganância de banqueiros inescrupulosos (desculpem-me pela redundância) como Lazare Weiller e a avidez de outros capitalistas, políticos e oficiais militares europeus corruptos (uma longa lista, encabeçada pelo Barão de Rothschild), para pressionar e chantagear as empresas jornalísticas em fase de expansão e, portanto, de alto endividamento.

Mas não seria tão fácil assim. Se, por um lado, podiam pressionar as empresas pelo poder de seus capitais, por outro nada podiam com os leitores dos jornais, que eram bem informados pela boa qualidade do jornalismo de que desfrutavam. Assim, para fazer descer goela abaixo da sociedade a farsa dos Wright, os fraudadores tinham de se obrigar a fazer o que mais detestavam: pôr a mão nos seus próprios bolsos para subvencionar os prejuízos das quedas nas vendas avulsas e das assinaturas, sem contar a veemência dos protestos dos leitores mais rigorosos, que viam suas inteligências insultadas pelas mentiras grosseiras que a farsa impunha. Em defesa da ética, de seus nomes e reputações, também os jornalistas resistiram com energia e bravura.

Foi uma queda de braço. De fato, conseguiram abafar bastante a repercussão mundial do vôo do 14 Bis em 12 de novembro de 1906, que, apesar de ter sido o “Vôo da Glória”, teve menos destaque que o anterior, de 23 de outubro, em que o 14 Bis saltou apenas 30 metros, o que lhe bastou para conquistar a Copa Archdeacon. E nem se comparam as repercussões de tais vôos com o estrondoso sucesso mundial de 1901, quando o Nº 6 circundou a Torre Eiffel pela primeira vez na história da aeronáutica.

Por outro lado, só com os cabogramas de Oklahoma a historieta dos Wright não saía do limbo das dúvidas e das mentiras mal contadas, por mais que se forçasse a barra. O jeito foi prometer a ida dos ilustres desconhecidos aviadores a Paris para exibirem o fenômeno aeronáutico que os cabogramas informavam, sem provas, teriam “inventado” três anos antes e para o qual reivindicavam primazia e privilégio de patentes.

Contudo, se na imprensa jornalística e na opinião pública a farsa emperrava, nos gabinetes fechados dos arranjos inconfessáveis tudo ia de vento em popa. Há registros de que Lazare Weiller investiu 500.000 francos só na demonstração dos Wright em Paris. E os exércitos dos EUA e da França apostavam fichas altas nas reservas de direito de uso das patentes, com exclusividade nos respectivos continentes. Enfim, a dinheirama rolou solta por aquelas bandas.

Mas é então que surge a História. O Instituto de Patentes não registra abstrações nem fatos jornalísticos, registra engenhos concretos, apresentados em formulações científicas claras que explicam seus funcionamentos em bases lógicas, e em protótipos reais que os confirmem na prática. Eis que, no caso, os fraudadores planejaram tudo com base em conhecimentos e experiências que vinham sendo produzidas naqueles últimos três anos em artefatos mais pesados que o ar, e que culminaram no 14 Bis. Como vimos na última Gazeta, no vôo do 14 Bis não se deu nenhuma invenção do aeroplano, mas a elucidação de um grande equívoco, que, em pouquíssimo tempo, mudou radical e completamente o rumo de tudo o que vinha sendo feito.

Tal mudança de rumos pegou os farsantes pelo pé. O Flyer apresentado por Orville Wright em Paris, em 1908, era um híbrido de várias experiências que, de uma hora para a outra, se viram ultrapassadas e vencidas. E ainda se jactava de inovador pelo uso do tal Pylon na decolagem catapultada, e não de rodas para a decolagem autônoma! Decolava a favor do vento, claro, pois a catapulta o atirava na corrente aérea, com o que pensavam ter achado a solução do problema que os pioneiros enfrentavam para sair do solo. Porém, tal problema não era mais que um enorme equívoco na abordagem dos princípios aerodinâmicos básicos, o qual finalmente foi elucidado por Santos-Dumont em 12 de novembro - eis aí o motivo principal do monumento com a inscrição histórica que lhe consagrou o Aero Clube de Paris na Praça de Bagatelle.

Mas foi assim, com o “pioneiro engenho” pseudovoador dos Wright, o Flyer, que os farsantes, com tanto empenho, pressão, chantagem e muita, muita grana, lograram, enfim, o perseguido registro e privilégio de patentes.

Só que, quando o lograram, o verdadeiro aeroplano já estava voando em bases lógicas e científicas totalmente diversas e até opostas, e suas patentes e direitos plenamente entregues ao domínio público, já entrando em linha de fabricação em série, e, pouco depois, publicadas em revista de distribuição mundial, em vários idiomas. E todos os países do mundo puderam desenvolver suas próprias pesquisas aeronáuticas livremente a partir daquele que acabou sendo o primeiríssimo aeroplano: o Demoiselle.

As patentes do Flyer caíram no olvido, tal como seus “inventores” desapareceram da História, quase por completo. Foram, porém, ressuscitados uns trinta anos mais tarde, no início da Segunda Guerra Mundial, pelos marqueteiros de guerra da força aérea dos EUA encarregados de forjar heróis e pioneiros para alimentar a moral e o patriotismo de seus guerreiros do ar.

Quanto aos espertalhões farsantes; não saíram no prejuízo, apesar do contundente fracasso. Os povos dos EUA e da França os ressarciram, com lucros, através de gordos aportes em dinheiro que seus exércitos fizeram com recursos dos respectivos erários, para garantir a reserva de uso daquelas tão disputadas patentes que jamais usariam.

Essa primeira batalha do jornalismo contra o capitalismo ficou empatada, no juízo da História. Os Demoiselle voaram no mundo inteiro com quase nenhuma repercussão na imprensa e ainda hoje a primazia de seu projeto, como invenção indiscutível do aeroplano que ainda em nossos dias voa nos céus do mundo inteiro, é ignorada em sua importância histórica. Muitas outras batalhas do tipo se dariam ao longo do século XX, todas com graves perdas para a Humanidade, como constatou o já citado Noam Chomsky. Algumas delas serão temas das próximas gazetas. Aguardem.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Gazeta em forma de e-meio 104

Reflexões do gazeteiro (IV)

Nesta série de artigos, a vinculação do jornalismo com a aeronáutica surgiu da coincidência histórica em que dois brasileiros de distintas épocas protagonizaram papéis centrais relacionados à criação da aeronáutica e, nos dois casos, foi o exercício honesto do jornalismo que não só assegurou à história a verdade dos fatos como deles participou de forma decisiva em seus processos e desfechos.

Isto levou o gazeteiro a refletir sobre a importância do jornalismo como supervisor humanista e crítico do progresso tecnológico, em particular no período conhecido como o da Primeira Revolução Industrial, e ao fato de que estas reflexões foram, desde o início, direcionadas a indagar o que aconteceu com o jornalismo no período que seria o da Segunda Revolução Industrial, em que agora vivemos o seu epílogo.

Os historiadores acadêmicos identificam essas duas revoluções com os ciclos da máquina a vapor e da eletricidade. Contudo, este gazeteiro sem compromissos acadêmicos prefere identificá-los, como insinua Gondim da Fonseca em texto citado na última Gazeta, com os do carvão e do petróleo. Se no primeiro predominou a máquina a vapor (movida a carvão), cujo progresso tecnológico foi impulsionado pelo transporte sobre trilhos, na segunda predominou o motor a petróleo (inclusive para a geração de eletricidade), tecnologicamente impulsionado pela aeronáutica.

Como já vimos, foi graças à supervisão humanista e crítica do progresso tecnológico que o jornalismo de então exercia que Santos-Dumont, por sua obra e atitude ética, tornou-se a personagem chave na inauguração da Segunda Revolução Industrial. Mas, como veremos mais à frente, seria no embate que em torno da saga do inventor se travou entre aquele jornalismo e os mais poderosos interesses capitalistas que as coisas começaram a mudar negativamente para a Humanidade.

Em recente conferência pronunciada no México, Noam Chomsky observou que “a Humanidade progrediu muito tecnologicamente, cientificamente, industrialmente, porém esta surpreendente evolução material se distancia muito da outra evolução, aquela que alimenta o ideal do espírito humano: paz, justiça, bem estar...” Chomsky está se referindo, evidentemente, à Segunda Revolução Industrial, e o gazeteiro substituiria o termo bem estar pela palavra cultura, uma vez que, numa sociedade tecnologicamente avançada, ela implica também a liberdade e, consequentemente, o bem estar. “Ser culto para ser livre”, dizia José Martí, sintetizando a ideologia bolivariana.

Apesar da simplicidade quase óbvia da observação de Chomsky, ela é muito importante para nós por tocar a medula destas reflexões. Principalmente quando se constata que, desde o começo da Primeira Revolução Industrial, é o jornalismo - como fator de resistência à manipulação capitalista nascente - a principal atividade difusora de cultura e de informação veraz aos povos da Terra, estivessem eles organizados em Estados soberanos ou em processo de libertação das colonizações de que eram vítimas.

No exato momento em que Santos-Dumont realizou o glorioso vôo do 14 Bis, em 12 de novembro de 1906 – que teve repercussão mundial -, os interesses capitalistas viram evaporarem-se os lucros que as patentes do mais pesado que o ar lhes prometiam assim como suas pretensões de dominar o mundo pelo controle dessas patentes. E trataram de reagir. Foi então que se articulou a primeira grande fraude de imprensa em nível mundial: os irmãos Wright. Os fatos demonstraram que ela estava sendo preparada com antecedência a fim de tentar neutralizar a vitória de Santos-Dumont, que vinha se anunciando e era bastante previsível, ainda que não de forma tão contundente.

Fora articulada um tanto desajeitadamente pelo magnata norte-americano Gordon Benett, o cidadão Kane do momento, e seus jornais Herald, de Nova York e de Paris, precursores clássicos dos impérios midiáticos que lhe seguiriam, em conluio com o embaixador dos EUA na França, Henry White, e o banqueiro Lazare Weiller.

Para o melhor entendimento de como ela foi articulada, como se sucedeu, suas causas e consequências para a época e para a História, se faz mister aportarmos informações pouco conhecidas sobre aqueles fatos decisivos e de suma importância para a detonação e o desenrolar da Segunda Revolução Industrial, que ainda se reflete em nossos dias.

Na busca histórica de mais de quatro séculos pela conquista dos ares através de um aparelho mais pesado que o ar, é possível identificar três correntes de pensamento lógico que se destacaram:

a) a que vislumbrava o helicóptero como mecanismo elementar, inaugurada por Da Vinci, Roger Bacon e outros, a qual prosseguiu ocupando os sábios pelos séculos afora sem, contudo, encontrar solução para o problema do contra-giro da cabine do piloto em reação à força do giro (torque) da hélice do aparelho uma vez em vôo, por falta de ponto de apoio. Da Vinci já propusera uma solução teórica pelo uso de duas hélices girando em sentido contrário e em velocidades exatamente iguais, uma anulando o torque da outra, mas, na prática, não se dispunha de tecnologia capaz de realizar tal exatidão, e a menor diferença de torque entre as hélices inviabilizaria o mecanismo. Tais especulações sequer saíram do papel e nem chegaram ao problema da propulsão que, até os meados do século XVIII, ainda imaginava-se que poderia ser humana, isto é, a pedaladas. Com o advento da máquina a vapor, a idéia começa a ganhar força e interesse realistas, os quais se incrementaram com a chegada dos motores a petróleo. Santos-Dumont, que pelo conjunto da sua obra não pertence a essa corrente, também tentou a solução do problema, sem êxito. Como vimos, só em 1939 Sikorsky o solucionou incorporando uma cauda ao aparelho e aplicando a hélice estabilizadora em seu extremo, criando assim a força aerodinâmica suficiente para compensar o torque da hélice de sustentação (asa rotativa) e estabilizar a cabine. Por incrível que pareça, recentemente a ciência conseguiu tecnologia para as duplas hélices girando em velocidades exatamente iguais em sentidos opostos, e a indústria aeronáutica russa já fabrica helicópteros de última geração sem a hélice de estabilização, tal como imaginara Da Vinci;

b) a que se desenvolveu com mais força no século XIX e tinha por fonte de pesquisa a Natureza, mais propriamente os pássaros, em que se destacaram célebres cientistas como Lilienthal, Langley, Chanute, Ader e muitos outros que, mesmo tendo conseguido algumas surpreendentes aproximações de projeto do que seria futuramente um aeroplano (em particular o Avion, do inglês Ader, que copia o morcego), não lograram viabilizá-lo por não encontrarem propulsão ao mesmo tempo leve e poderosa capaz de fazê-los sair do solo. Colecionaram protótipos que variaram do absurdo ao factível, incontáveis tentativas fracassadas e lamentáveis acidentes fatais como o de Lilienthal, mas depois que a aeronáutica se tornou realidade tem sido retomada por importantes projetistas, em particular os da Segunda Guerra Mundial; e

c) a que se desenvolveu em sentido oposto à anterior, no início do século XX, a partir dos progressos da ciência e da mecânica para a busca de formas de sustentação e meios de propulsão que solucionassem a questão peso-potência para fins aeronáuticos. A esta pertenceram boa parte dos que tiveram êxito palpável, antes e depois do Demoiselle, em que se destacaram Farman, Voisin, Bleriot, Santos-Dumont e vários outros nomes importantes. Santos-Dumont costumava dizer que “a Natureza nunca foi boa mestra para a mecânica; por ela teríamos trens com pernas de ferro e navios com barbatanas”.

O fato é que, no início do século XX, depois de todo um imenso esforço humano empenhado na questão, o único aparelho mais pesado que o ar controlado pelo homem que se conhecia capaz de voar era o tradicional e milenar papagaio (ou pipa) chinês. Este inocente brinquedo foi, contudo, o motivo de dois enormes equívocos que desnortearam os pioneiros da aeronáutica e só foram solucionados por Santos-Dumont:

1) o de que uma estrutura cúbica celular era capaz de sustentar uma aeronave de tamanho suficiente para transportar pessoas e cargas; e

2) o de que a estabilidade e a propulsão de uma aeronave seriam “ajudadas” na decolagem pelo vento a favor, ou seja, o de que a trajetória de decolagem deveria ser no mesmo sentido do vento que soprava na pista.

Foi no vôo do 14 Bis que Santos-Dumont desfez o segundo equívoco. E este foi o maior mérito do 14 Bis para o futuro da aeronáutica. Depois de várias tentativas mal sucedidas de decolagem, Santos-Dumont percebeu que o vento só o prejudicava e decidiu fazer uma tentativa em sentido contrário, ou seja, contra o vento. Muitos dos experts que acompanhavam a experiência pensaram que ele tinha ficado louco. A mesma comissão de arbitragem não tinha previsto medir o vôo feito em sentido contrário ao do vento. Assim, o registro da saída do solo acabou se estabelecendo a partir de uma fotografia obtida naquele exato momento, e na qual aparecia um homem com uma bicicleta alinhada com as rodas que deixavam o solo. O ponto de decolagem foi marcado pela posição da bicicleta, que pôde ser verificada com precisão por referências estáticas do local, e o de pouso foi marcado pelo juiz que deveria marcar o de decolagem. Não se pode dizer que aquele fora exatamente um vôo; foi muito mais um salto impulsionado pelo poderoso V8 de 50 HP, recém projetado e construído pelo inventor, o qual, ao enfrentar um bom vento contrário, era capaz de tirar do solo até um piano de cauda.

Mas a descoberta, em sua mais elementar simplicidade, não só desfez um equívoco tremendo como inverteu toda a lógica de pesquisa e projetos pioneiros. Já no número 15, que imediatamente se seguiu, Santos-Dumont chegou perto das características elementares do aeroplano futuro. Virando o 14 Bis pelo avesso, mandou para a popa os comandos de leme e profundor e colocou-se, como piloto, sentado e à proa. Mas o primeiro equívoco ainda permanecia nas estruturas cúbicas celulares de sustentação que formavam as partes do aparelho que já eram chamadas de “asas”. E, no Nº 15, feitas de madeira compensada e, portanto, ainda mais pesadas que as do 14 Bis, que eram de lona. Foi um fracasso.

Mas assim é a trajetória dos gênios. O conhecimento e as descobertas não surgem de forma direta e linear. Os três projetos que se seguiram ao Nº 15 podem parecer confusos e fora de propósito para quem participava de uma corrida tecnológica com o objetivo concreto de fazer voar um aparelho mais pesado que o ar. O Nº 16, talvez o mais belo design de balão dirigível jamais realizado e colocado em vôo; o Nº 17, em que, nos protótipos inacabados, foram abandonados dois projetos de helicópteros; e o Nº 18, um deslizador aquático de alta velocidade, com o qual o inventor testou várias novidades em estruturas náuticas e aeronáuticas. Em determinados momentos, em geral os mais difíceis, o inventor percebe que a solução está bem perto dele, a ponto de poder tocá-la com os dedos, mas não a encontra, por mais que quebre a cabeça. Nestes casos, há que esperar um insight, assim como o poeta, quando a musa lhe parece ausente, tem de aguardar a inspiração. Enquanto isso, o gênio não pode parar, faz o que pode com o que tem à mão e nada perde com isso. “Os gênios não erram; seus erros são volitivos e são portais de novas descobertas” (James Joyce, Ulisses)

Eis que, então, surge o insight. E, no caso de Santos-Dumont, o “achado” que estava achado há tempos: as asas de perfis aerodinâmicos de Lilienthal, Chanute e Ader, copiadas da natureza e tão antigas quanto as de Ícaro, cuja imagem, por sinal, ilustrava o ex-libris do inventor. E os ailerons, que ele mesmo havia criado para o 14 Bis, e os aplicara justamente no vôo da vitória, mas não dera com o valor que tinham, talvez porque com eles se esborrachara e destruíra o 14 Bis numa tentativa posterior para aprimorá-lo. Tanto é que não os usou no Nº 15.

Eis, então, que surge, sem alarde, o Nº 19, a “libélula”, com a sua cauda de bambu que logo seria substituído, no Demoiselle (Nº 20), por uma estrutura rígida de seção triangular que lhe daria a firmeza e a maneabilidade do aeroplano que nele nascia, junto com a aeronáutica do século XX. Tudo isto - do vôo da vitória no 14 Bis ao Nº 21, o definitivo Demoiselle -, ocorreu em menos de dois anos. E a história da aeronáutica só tem o Demoiselle para apresentar como marco concreto e berço da aviação civil, que, no ano passado, 2008, se fez centenária, porém sem nenhuma comemoração.

Por que será?

Por que foi tão celebrado nas manchetes de primeira página dos principais jornais do mundo o vôo do 14 Bis, sem dúvida um passo importante na conquista da aviação, e o advento do Demoiselle, a primeira aeronave que efetivamente realizou o sonho da aeronáutica para a humanidade, até com a sua pioneiríssima fabricação em série por duas importantes indústrias francesas, quedou quase invisível em notas de páginas internas e até hoje permanece num limbo histórico injusto como apenas um projeto a mais de Santos-Dumont, inclusive nas obras de seus muitos e grandes biógrafos?

Ficará para a próxima Gazeta a análise e, se possível, a resposta desta questão, e não estamos prometendo especulações, mas a revisão crítica sobre fatos concretos e bem documentados, a qual, uma vez que sustentada nas informações aqui aportadas e no que tange a tudo o que conhecemos do assunto, será uma abordagem inteiramente inédita para aqueles tão importantes quanto decisivos eventos históricos.

sábado, 10 de outubro de 2009

Gazeta em forma de e-meio 103

Reflexões do gazeteiro (III)

Passaram-se 200 anos para que o fiasco do jovem visionário brasileiro em Lisboa fosse vingado pela contundente vitória de outro jovem brasileiro, desta vez em Paris. E, novamente, a aeronáutica deve ao jornalismo combativo e leal aos fundamentos originais do ofício, que ainda se praticava na França, um papel fundamental no decorrer dos fatos, no registro deles e na afirmação irrevogável da verdade histórica.

Ao contrário de Gusmão, Santos-Dumont chegou na Europa sem alarde ou aviso; não foi lá para fazer petições a poderes constituídos, para se exibir em palácios ou pedir favores. Foi porque Paris possuía as condições de que ele necessitava para realizar o que tinha em mente, não como sonho visionário, mas como cálculo ousado ao qual o destino acabou por conceder-lhe o prêmio, aliás bem maior do que toda a audácia de um jovem gênio inventor de sua época poderia projetar.

Numa fulminante trajetória de apenas dez anos, do balão Brasil (1898) ao Demoiselle (1908 - o primeiro avião do mundo, e não o 14-Bis, como muitos acreditam), realizou nada menos de 23 projetos aeronáuticos pioneiros, verdadeiras obras primas de engenho e arte, 15 dos quais ele mesmo pôs em vôo, além de inúmeros inventos secundários, mas nada desprezíveis, tais como os primeiros motores a petróleo (incluindo o famoso V-8 e o motor de “dois tempos”), o relógio de pulso, o chuveiro para banho, a descarga d’água em vaso sanitário, a madeira compensada, incontáveis ferramentas de oficinas e uma longa sequência de etcéteras. Em nove desses dez anos, desfrutou a condição de ser o único ser humano em todo o mundo a compartilhar com os pássaros o tridimensional e até então inexplorado espaço sem fronteiras da atmosfera terrestre.

- “Digam o que disserem, não há dois dirigíveis no mundo, mas apenas um. E é preciso vir até Paris para vê-lo” – disse Deutsch de la Meurte em 1901, sob a pressão de grande polêmica por conceder o prêmio a Santos-Dumont pelo célebre vôo até a Torre Eiffel.

Para os manipuladores de plantão, a trajetória do jovem brasileiro em Paris era uma verdadeira dor de cabeça. Não se subordinava a ninguém, não pedia auxílios, favores ou permissões, não reconhecia autoridades, não perguntava se podia ou não voar ao seu bel prazer pelos céus de Paris – e quem poderia impedi-lo? Além do mais, não permitia que os frutos de sua genialidade servissem a interesses de quem quer que fosse, a não ser à Humanidade mesma, a quem doou sem pedir nada em troca todas as suas invenções extraordinárias, sem exceção. Registrava-as, sim, todas, mas sempre para o domínio público (“que péssima idéia!”), e levava às barras dos tribunais os que tentavam usurpar-lhe invenções em benefício próprio.

Esse é o tipo de rebelde mais perigoso para os manipuladores de sociedades. Eis por que, mal despontou a possibilidade de que Santos-Dumont poderia resolver o problema do transporte aéreo, já então na mira da ganância das maiores potências capitalistas, começaram os boicotes e as sabotagens contra o jovem inventor e sua obra imortal. E, se não fosse o apoio do jornalismo combativo e incorruptível que era praticado pelos principais jornais daquela Paris de então - que trouxe ao inventor o apoio inarredável da opinião pública -, com certeza teriam logrado impedi-lo de chegar onde chegou.

Gondim da Fonseca, uma das maiores glórias do jornalismo brasileiro e o melhor biógrafo de Santos-Dumont, descreve em preciosos detalhes o combate que se travou, inusitadamente, numa nação famosa por seu chauvinismo, entre uma imprensa honesta e atuando responsavelmente em defesa da glória merecida de um estrangeiro e os poderes interesseiros e xenófobos, que procuravam sabotá-lo, desqualificá-lo e desacreditá-lo.

Gondim, que é também o autor de uma das obras mais importantes sobre o petróleo (O que sabe você sobre o petróleo?, de 1958), que, segundo Gilberto Vasconcellos, ainda não foi superada, concede a Santos-Dumont não somente a glória de ter sido o inventor do aeroplano, mas também a de ter “descoberto” o petróleo:

“Parece incrível que ninguém, a não ser esse moço brasileiro, visse claro o futuro do petróleo. Ninguém, nem o próprio John Rockfeller (maioral da geração de barões salteadores que construiu os Estados Unidos), milionário carola que respondia na ocasião a vários processos de fraude por haver lesado centenas de criaturas –, percebeu, como Santos-Dumont, que o novo carburante mineral se tornaria no século XX o que o carvão de pedra se tornara desde o segundo quartel do século XIX: um dos máximos instrumentos da força e do progresso.”

Porém, no que toca a estas reflexões do gazeteiro, a contribuição de Gondim à biografia de Santos-Dumont que mais importa é a da batalha das idéias e o papel do jornalismo consequente não só para o registro verídico da história, mas para a vingança da verdade coeva pela qual aqueles jornalistas lutaram com bravura, inclusive despojando-se dos impulsos tendenciosos e chauvinistas e esquivando-se das tentações do diabo capitalista, que sempre se apresentam em tais ocasiões.

Os principais diários parisienses, como o Les Temps, o L’Illustration, o Figaro, o Petit Journal, entre outros, engajaram-se na luta a favor daquele solitário jovem que, com a ajuda de alguns poucos operários e às próprias custas, competia com as nações mais ricas e poderosas do planeta, a própria França, a Inglaterra, a Rússia, os EUA e até o Japão, na corrida tecnológica para encontrar a solução do transporte aéreo, que então se vislumbrava não mais como uma perspectiva visionária, mas como uma realidade concreta, fosse através do mais-leve ou do mais-pesado-que-o-ar.

Gondim cita jornalistas da estatura de Maurice Talmeyr, Adrien Hébrard (editor do Les Temps e conhecido como “o informadíssimo Hébrard”), Georges Goursat (também caricaturista e artista plástico), Francois Peyrey, além de fotógrafos e cinematógrafos (incluindo os irmãos Lumière) e toda uma geração de jornalistas e comunicadores irredutíveis formados na tradição combativa de um jornalismo que se estruturara desde o século anterior nas penas imortais de gênios como Balzac, Victor Hugo, Zola, Anatole France, para só citarmos alguns. Enfrentando com coragem o pesado lobby dos interesses políticos e financeiros que queriam para si as patentes e privilégios das invenções que viabilizariam a aeronáutica e mudariam o mundo, acompanharam, passo a passo, toda a trajetória do jovem gênio brasileiro naquela década de invenções e descobertas, apoiando-o e conquistando para ele e seus propósitos desinteressados a opinião pública nacional e até a mundial. As coberturas dos jornais franceses transcenderam as fronteiras nacionais e se espalharam por todo o mundo; Santos-Dumont tornou-se um nome internacional entre os mais celebrados de sua época.

O volumoso dossier que as reportagens desses jornalistas geraram pelas matérias publicadas e não publicadas sobre aqueles fatos constitui-se num acervo documental de tal ordem que deixa sem qualquer seriedade a discussão que tente contestar a verdade histórica que se consagra, sem margens para dúvidas, nesta sentença inscrita em mármore no marco da praça de Bagatelle:

LE 12 NOVEMBRE 1906 SOUS LE CONTROLE DE
L’AEROCLUB DE FRANCE
SANTOS-DUMONT
A ÉTABLI LES PREMIERS RECORDS
D’AVIATION DU MONDE
DURÉE 21s 1/5 DISTANCE 220m

Este é o registro do celebérrimo vôo do 14 Bis. Mas o primeiro aeroplano a voar no planeta Terra seria fruto do projeto nº 19 de Santos-Dumont, iniciado em 1907, saído de um insight do inventor após várias tentativas frustradas de aprimoramento do 14 Bis, incluindo dois projetos de helicóptero que foram também descartados.

O projeto vitorioso foi posto em operação no início de 1908. Desde então, o Libelulle e o Demoiselle, nos dois apelidos que lhe deram os parisienses, o primeiro para o modelo nº 19 (por causa da cauda feita de uma só vara de bambu) e o segundo para os modelos aprimorados de nº 20 e nº 21 (pela delicadeza dos designs), passaram a ser parte do dia-a-dia dos céus parisienses. De tal forma que se tornaram os primeiros veículos automotivos produzidos em série (foi Santos-Dumont quem inventou a produção em série e não Henry Ford, como se pensa por aí), fabricados e comercializados nas firmas Clement-Bayard (75 exemplares) e R. Dutheil, R. Chalmers & Co (60 exemplares).

Depois, Santos-Dumont os aprimorou ainda mais e publicou todo o projeto, nos mínimos detalhes, na revista norte-americana Popular Mechanic, autorizando a produção ilimitada a quem a desejasse. Foram produzidos milhares de exemplares em todo o mundo e, até os anos 1960, o Aero Clube de Paris ainda mantinha um concurso anual para premiar a melhor réplica do Demoiselle que fosse construída no ano anterior.

Nesta aeronave, desde a sua primeira versão, estão presentes os fundamentos básicos (características elementares) de todos os aeroplanos que a ela se seguiram e são produzidos até os nossos dias, a saber: a decolagem autônoma, a sustentação com asas de perfil aerodinâmico, o baricentro (centro de gravidade) em posição estável, os três comandos aerodinâmicos básicos (leme e profundor traseiros e aileron nas pontas das asas), o cockpit em localização dianteira para pilotagem em posição sentada e o trem-de-pouso com rodas pneumáticas. A propulsão por motor de combustão interna a petróleo, apesar de esmagadoramente dominante nas gerações posteriores de aeroplanos até os nossos dias, em particular nos de pequeno porte, não é obrigatória e pode variar para turbinas e outros tipos de motores acionados por diferentes combustíveis.

Confirma-se assim, também na aeronáutica, a tese filosófica lembrada na gazeta passada. Todo aeroplano pilotado pelo homem de ontem, de hoje e de sempre, ou possui todas as características elementares do primeiro aeroplano construído pelo homem, o Demoiselle, ou não é um aeroplano.

O 14 Bis só possuía a primeira e a última dessas características elementares, ou seja, a decolagem autônoma e o trem-de-pouso com rodas pneumáticas. Quanto às demais, a sustentação era dada por asas de estruturas cúbicas celulares (o papagaio chinês), só possuía dois comandos aerodinâmicos (leme e profundor) numa só estrutura cúbica celular dianteira, a nacelle (usada em dirigíveis) tinha localização traseira para a pilotagem em pé, e o baricentro era instável (o equilíbrio e o comando lateral eram dados pelo piloto, movimentando seu corpo).

O Flyer, atribuído aos irmãos Wright, que só foi visto pela primeira vez “voando” uns 30 a 60 metros em linha reta, no final de 1908 - quando Santos-Dumont, ao comando de seu Demoiselle, já fazia visitas de surpresa a propriedades de amigos nos arredores de Paris, percorrendo em 15 minutos de vôo distâncias que carruagens levavam três horas e meia -, não possuía nenhuma dessas características elementares. Decolava catapultado por uma geringonça chamada “Pylon”, que exigia o concurso de uns doze homens bem fortes para armá-la, e o piloto comandava a traquitana “voadora” deitado de bruços no centro da estrutura do tipo celular (que dava sustentação aerodinâmica ao conjunto) para conseguir a estabilidade do baricentro e, ao mesmo tempo, exercer, movimentando seu corpo, o comando lateral. Pousava sobre esquis.

Este gazeteiro é autor de um livro em forma de roteiro cinematográfico editado em 1995, com tiragem limitada, intitulado Dans L’Air – A via Santos-Dumont, que pode ser encontrado na íntegra no seguinte endereço internético: http://marioobras.blogspot.com/2009/04/1995-ficcao.html

A obra culmina mais de vinte anos de estudos e pesquisas sobre o tema e este autor crê, com segurança, que, se não fossem a valentia e a honestidade profissional dos jornalistas que acompanharam as façanhas do nosso gênio da aeronáutica, é possível que Santos-Dumont não chegasse sequer ao 14 Bis e, consequentemente, ao insight que o levou a projetar, construir e voar o primeiro aeroplano da história.

Não é possível sabermos o quanto isto retardaria a evolução tecnológica da aeronáutica, mas apenas para termos uma noção das possibilidades, o próximo insight decisivo para a aeronáutica somente ocorreria em 1939, no gênio do projetista russo Igor Sikorsky, ao “achar”, de estalo, a hélice traseira estabilizadora que tornaria possível a construção do helicóptero imaginado quase 400 anos antes por Leonardo Da Vinci, e cuja solução foi tentada ao longo de todos esses anos, sem sucesso, por vários outros gênios inventores, incluindo Santos-Dumont.

A Gazeta continuará no tema.