sexta-feira, 31 de julho de 2009

Gazeta em forma de e-meio 92

Katia Mendes Campos

Nos caminhos e descaminhos desta vida, que no meu caso há muito passou o mezzo del camin, vamos acumulando uma bagagem biográfica que a memória vai conservando e resguardando como pode, e, às vezes, na odisséia em que se vai transformando o nosso dia-a-dia, não deixa de ser saudável, enriquecedora, uma pausa de verificação; a avaliação dos conteúdos vividos, sofridos e desfrutados; a meditação em profundidade sobre o que somos, a partir do que fomos.

Tais ocasiões, ainda no meu caso, não ocorrem por cálculo, nem por decisão pessoal; elas surgem de supetão, de uma força superior, uma espécie de determinação cósmica que não nos permite outra alternativa senão a de fazer o balanço da própria existência para continuar indo à frente de si mesmo, e não a reboque dos fatos.

Não raro, são, também, momentos de luta... e nesses, no mais das vezes, de derrotas. Como a que acabo de sofrer, junto aos entes mais próximos e mais queridos, no epílogo que nos pareceu tão injusto para a vida simples, bonita e amável que foi a de Katia Mendes Campos. Foi uma luta surda e desigual dos que nada podiam e tudo faziam contra os que tudo podiam e nada faziam, no cenário de pesadelo que é o Hospital das Clínicas de Belo Horizonte.

Ficam para outra ocasião as denúncias dessas injustiças, pois o que importa aqui é a reflexão enriquecedora da tragédia sem dramas que abateu sobre o nosso pequeno grupo de pessoas depois dos 111 dias de internação daquela com quem outrora partilhei quase uma década de convivência, e que me concedeu a honra de ser o pai de seus três filhos – três glórias, três imensuráveis alegrias: o momento imediatamente seguinte – que não foi de frustração - à interminável aflição de aguardar o transplante salvador pelo qual lutamos com todas as nossas poucas forças e nenhum poder, e que nunca aconteceria.

Também não se trata de compor encômios à falecida, necrológio ou exaltação da sua biografia. É algo muito mais valioso, é o que ficou em nós, o que penetrou a nossa existência no instante mesmo em que expirou a infeliz paciente, por sinal, um instante feliz, na presença carinhosa e confortadora de suas três maiores dádivas, durante a luz crepuscular e diáfana do ocaso solar invernal, que foi o do dia 13 de julho passado. No dia 30 de agosto próximo ela completaria 57 anos e este será o dia em que, segundo antigas crenças, ela se converterá em uma nova estrela brilhando nos céus límpidos de inverno em Minas Gerais.

Há os que valorizam dinheiro, fama, sucesso e outras ninharias mundanas... pobres, esses! Quando momentos como aquele, de perda irreparável, provocam o corte seccional imaginário da nossa memória toda, é que temos, por preciosos instantes de extrema sensibilidade, acesso ao sabor, ao aroma e ao brilho do seu núcleo mais valioso; a energia transcendental que sustenta, pulsa e mantém viva toda ela... e, aí, devo voltar ao meu caso. No meu caso, leitor, confirmou-se o que eu já intuía; eu o vi, nítido, claro, luminoso: é uma jaboticaba – uma simples, graúda e perfeita jaboticaba; e no ponto de estourar ao menor toque!

Mais negra e mais brilhante que a pérola mais negra, mais deliciosa que o néctar mais saboroso, ela traz o aroma suave e delicado da essência que, em minha modesta opinião, melhor representa simbolicamente a mulher brasileira, sem dúvida a mais inspirada e sensível de todas as criações da natureza. Especialmente a que foi, para mim, em inesquecíveis fragmentos de uma vida amorosa, na beleza morena, corajosa e gentil de Katia Mendes Campos.


PS – a Gazeta agora volta ao seu velho estado de (a)normalidade.