terça-feira, 25 de agosto de 2009

Gazeta em forma de e-meio 96

Palavras sem obras são tiros sem bala
(Pde. Antonio Vieira, Sermão da Sexagésima)


Da incrível atualidade da obra de Padre Antonio Vieira

Estamos no ano da graça de 2009. Em um teatro abarrotado, diante de uma platéia atenta e concentrada, composta na sua maioria por jovens, um ator despojado de outros recursos que não o texto, a batina e parcos objetos litúrgicos magnetiza a audiência com as palavras de fogo saídas da pena magistral do Padre Antonio Vieira.

Esclareça-se que o Sermão da Sexagésima “cai” no próximo vestibular da UFMG, fator que, em parte, viabilizou a montagem e garantiu tão grande presença de público, segundo o próprio intérprete-diretor-adaptador-produtor-cenógrafo-figurinista-sonoplasta-contra-regra-realizador do espetáculo, o teatrólogo Rodrigo Leste.

Obra prima da Oratória, o célebre Sermão da Sexagésima ficou muito bem no palco. Foi escrito para ser pregado no púlpito da Capela Real em Lisboa pelo próprio autor. Ao ler Vieira, temos, pois, de nos contentar com um gozo incompleto, uma vez que são obras que foram escritas para serem ditas muito mais que para serem lidas. Muito diferente, é ouvir Vieira. O teatro, somente o bom teatro - e exclusivamente através de sua linguagem própria e única - é capaz de realizar o milagre de fazer reviver a peça de oratória enquanto acontecimento artístico em que a presença partícipe do espectador, como ouvinte, é condição fundamental para que se realize pleno.

Eis que, mais uma vez, a Gazeta, em sua precariedade de condições, dá mais este furo de reportagem. Traz uma notícia que, na verdade, são duas de igual importância: uma, que o dramaturgo Rodrigo Leste, em seu labor profissional e militante da literatura e do teatro brasileiros, realizou a façanha, e com méritos indiscutíveis; outra é que, com a sua montagem brilhante e a sua disposição de guerrilheiro cultural, lotou três sessões no Teatro do Imaculada (400 lugares), em BH, sábado e domingo passados, e desbundou um público jovem praticamente virgem de experiência com o teatro.

Este repórter entrevistou alguns dos pré vestibulandos na saída da sessão de domingo que confessaram, cada qual ao seu modo, como Natália, que vai “tentar Medicina”, que aquela experiência havia transcendido o interesse objetivo do vestibular e lograra atingir a sensibilidade deles para o teatro e para a literatura brasileira, em particular, a obra de Vieira, até então, para Natália, hermetizada num complexo jogo de palavras que só deixou de ser confuso a partir do momento em que ela pôde ouvi-las, ao vivo, na interpretação de Rodrigo Leste.

Seguiu-se à encenação um bate-papo com os professores Kaio Carmona e Sérgio Alcides, ambos de Literatura Brasileira, os quais, junto a este gazeteiro, foram convidados por Rodrigo para debater com a platéia e elucidar eventuais dúvidas dos vestibulandos. Mas pouco ou nada pudemos fazer nesse sentido; a platéia demonstrava-se muito satisfeita com o que acabara de vivenciar. Considero que o depoimento da estudante Natália, numa escala outra, é válido também para os que, como nós, vivemos e amamos o teatro desde criancinhas.

Confesso que foi ali, pela primeira vez ouvindo Vieira, que apreendi e desfrutei, na plenitude, a essência e o gozo emanados do seu gênio, inclusive a incrível atualidade de seus achados imortais, os quais magistralmente expressou, como ninguém. Com a força da dramaturgia e da dicção daquele texto que foi composto para ser dito, e dito como tal, com veia e verve, as palavras de Vieira nos penetram poderosas, e a magia do teatro se completou desde os primeiros instantes, logo ao abstrairmos a presença do intérprete e sentirmos a do personagem nele encarnado, como se ali estivesse, diante de nós! O leitor iria amar a experiência, não tenho a menor dúvida!

Infelizmente, Rodrigo informa-nos que o “ciclo Vieira” acabou ali. Por que? – é a pergunta imediata do jornalista. “Simplesmente, por não haver público” – respondeu o guerrilheiro – “nessas três sessões reuni todo o público possível de se trazer ao teatro para um espetáculo como este.”

Falou quem sabe dessa realidade. Há mais de trinta anos conheço Rodrigo Leste, incansável, na mesma luta, no começo em trupes, depois na solidão do artista que encara sem ilusões a adversidade do seu destino e consegue transformá-la em seu pão de cada dia; e vai em frente! Encontrou a brecha da necessidade juvenil e escolar do teatro didático e dentro dela soube introduzir, com exemplar humildade, suas qualidades de escritor e dramaturgo, viabilizando um profissionalismo de resistência pela batalha do ingresso barato e do interesse imediatista dos escolares, com o que mantém o seu trabalho portátil, pobre de recursos (como só o teatro pode ser) e rico de idéias. Idéias que, de uma forma ou de outra, se propagam com uma vingança que jamais haverá nos plantios transgênicos e sistêmicos, ricos de recursos e esterilizados de idéias, que se urdem no mandarinato cultural para serem o que Vieira chamou de “tiros sem bala”:

“Palavras sem obra são tiros sem bala; atroam, mas não ferem.(...) Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras.”

O trabalho solitário e heróico de Rodrigo, com quase nenhuma resposta divulgadora e difusora, em sua imerecida insignificância no que diz respeito à repercussão e ao público, ainda assim demonstra que a juventude precisa do teatro, quer o teatro e ama o teatro, porém, o teatro que vai ao coração e à inquietação dos jovens construtores de novos mundos; isto é, o verdadeiro teatro, não comercial, essencial.


Em tempo: na saída do espetáculo, a jovem platéia era assediada pela distribuição de panfletos de divulgação de uma comédia intitulada Perigosas Peruas, uma das “pérolas” do teatro produzido em Minas que se vangloria de levar multidões às salas através “da mais bem sucedida Campanha de Popularização do Teatro do Brasil”.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Gazeta em forma de e-meio 95

A misteriosa incógnita

Entre os maiores problemas na formação intelectual dos poucos de nós, brasileiros, que tivemos ou temos acesso a tal luxo, está o direcionamento ideológico e censor por parte dos que exercem poderes nos diversos meios de acesso ao conhecimento, dentro e fora da nacionalidade. Nem me refiro aos meios de comunicação ou aos currículos escolares e acadêmicos, que todos sabemos minados de manipulações, das mais sutis até as mais grosseiras, e de lacunas abissais. Se dependêssemos deles sequer poderíamos alegar que tivéssemos alguma formação intelectual.

Aqui denunciamos algo tão ou mais perverso, algo em que quase todos tivemos de passar necessariamente, como num corredor polonês, na condição de vítimas de boa fé, de crédulos ingênuos, numa etapa inevitável em que acreditávamos caminhar na direção correta do processo libertário que almejávamos não só para o nosso pensamento, mas para a Humanidade toda: o humanismo revolucionário.

Refiro-me ao direcionamento extra-curricular e, também, mediático supostamente “alternativo”, perpetrado por manipuladores ardilosamente periféricos às deficiências em que são propositalmente mantidas as instituições formais, armando verdadeiras emboscadas para os inquietos e insatisfeitos, ao camuflarem-se na cenografia atraente das “vias revolucionárias”, em particular as que se autoproclamam “de esquerda”.

Nada perdemos, claro, por nos debruçarmos nos ensinamentos de Sócrates, Platão, dos iluministas, da revolução francesa, de Napoleão e tantos outros pré-moldados do ensino oficial, nitidamente importados da Europa, ainda que intoxicados “de fábrica”. Nem vamos dar por perdido o tempo dedicado ao conhecimento dos “proibidos” consentidos pelos mesmos fornecedores, tais como Marx, Lenin e um vasto etcétera (vamos economizar espaço, o leitor entende).

A queixa é contra o pouco ou nenhum caso que fazem ambos esses “diretores do conhecimento” da nossa própria história, dos nossos pensadores e fatos de relevo, muitos dos quais não só são muito mais interessantes, mais profundos, mas, antes de tudo, humanistas e autenticamente revolucionários. E quando digo nosso refiro-me não somente ao Brasil, mas a toda a América Latina, a Nuestra América.

Reproduzo aqui um trecho da entrevista que fiz alguns anos atrás com o recém falecido escritor paraense Benedicto Monteiro, que foi publicada, em parte, na Caros Amigos:

MD - Então estamos perdendo mesmo a Amazônia?

BM - Infelizmente, estamos. Mas eu ainda acredito no nosso povo. No passado, foram os mestiços que fizeram a Cabanagem. Eu digo que a Cabanagem foi a única revolução do mundo em que o povo depôs o poder e assumiu de fato o poder. E isto aconteceu no Pará, em 1830. Veio a repressão, e matou mais de quarenta mil pessoas. Tivemos em Eduardo Angelim o grande herói revolucionário. Ele liderou uma verdadeira revolução brasileira, e eu digo revolução no sentido inclusive marxista - era o povo que derrubava o governo alienígena, imperialista, gente vindo de fora para governá-lo. Um povo que queria e sabia como assumir e conduzir o poder em sua própria terra.

MD - A Revolução Caraíba? Ou um precursor de Solano Lopes no Brasil?

BM - Não, não era uma revolução de um ditador. Era o povo conquistando o poder. Mas o pior é que os próprios paraenses não sabem nada disso. Eu estudei no Colégio Marista, no Pará, na década de 40. Alguns professores eram franceses, e eu saí de lá sem saber nada sobre a Cabanagem, sobre o Pará e o Brasil. Mas sabendo tudo sobre a França e a Revolução Francesa!

Benedicto se confessa vítima do ensino oficial, mas outro grande pensador, Oswald de Andrade, em sua brilhante trajetória de poeta, escritor e estudioso, amargou o corredor polonês “de esquerda” entre 1930-1945, período duro, em vista do que dedicou-se depois a cobrir muitas das lacunas criminosamente abertas na formação do intelectual brasileiro, entre as quais o desprezo pela Inconfidência Mineira como berço do nosso processo cultural e libertário, o pouco caso com as obras de Machado de Assis e Euclides da Cunha e o completo descaso pelas raízes autóctones e africanas naquilo que, depois, Darcy Ribeiro chamou de processo civilizatório brasileiro. No combate interno e externo contra a cultura européia que importamos a altos custos, Oswald deixou um legado fabuloso e praticamente desconhecido, mas não teve tempo de vida suficiente para vislumbrar o lado americano das imensuráveis fronteiras do Brasil com nossos vizinhos continentais. Foi Darcy que, posteriormente, se deu a esse trabalho e também nos trouxe contribuições importantíssimas. Ambos foram amaldiçoados pelos próceres da oficialidade e da “esquerda” e permanecem relegados ao olvido.

Mas o que traz este protesto da Gazeta provém de algo ainda mais grave.

Em 1974, andei por Lima, no Peru, e foi quando percebi que estava sendo enganado. Darcy Ribeiro estava lá, exilado. Na minha bagagem vieram livros como os de José Carlos Mariátequi (Sete ensaios) e José Maria Arguedas (Los rios profundos).

Atualmente, as minhas incursões por internet em veículos de língua espanhola começam a descortinar o tamanho do engodo. Chega a ser assustador o descobrir-se, assim, tão ignorante: no horizonte, nomes como os de Miranda, Simón Rodrigues, Martí, Sucre, San Martin, Artigas, Morazan, Sandino e até o brasileiro Abreu e Lima surgem, entre vários outros, grandiosos, na galeria dos titãs históricos com os quais deveríamos ter familiaridade desde o grupo escolar. Sem falar das façanhas que protagonizaram, em alguns casos muito para além das obras primas geniais que nos legaram. Estão cuidadosamente escondidos, leitor, principalmente o mais perigoso de todos, que só agora, com quase sessenta anos e a cabeça bem branca, tenho acesso em língua brasileira, talvez pela primeira vez traduzido em obra de peso: Simón Bolívar.

Por que será Bolívar tão perigoso para o nosso conhecimento?

É bastante chegar à página 3 da leitura dessa antologia (1) para sabermos a resposta. Depois de longa estadia na Europa, circulando por vários países e capitais, tendo por guia o seu mestre, o sábio educador Simón Rodrigues, ele, com apenas 22 anos, já viúvo, diante das ruínas do Império Romano, no Monte Sacro, em Roma, escreveu e pronunciou em voz alta, diante do mestre e de várias testemunhas, o belíssimo texto que começa assim:

“Então, este é o povo de Rômulo e Numa, dos Gracos e dos Horácios, de Augusto e de Nero, de César e de Brutus, de Tibério e de Trajano? Aqui todas as grandezas tiveram suas peculiaridades e todas as misérias seu berço.”

E, depois de uma síntese erudita, analítica e bem articulada da cultura européia até os seus próprios dias, conclui assim:

“Este povo deu para tudo, menos para a causa da Humanidade: messalinas corrompidas, agripinas sem entranhas, grandes historiadores, insígnes naturalistas, guerreiros ilustres, procônsules rapinantes, sibaritas desenfreados, apuradas virtudes e crimes grosseiros, mas, para a emancipação do espírito, para a extirpação das preocupações, para o enaltecimento do homem e para a perfectibilidade definitiva de sua razão bem pouco, para não dizer nada. A civilização que foi soprada do Oriente mostrou aqui todas as suas faces, revelou todos os seus elementos; mas, quanto a resolver o grande problema do homem em liberdade, parece que o assunto foi ignorado e que o desfecho dessa misteriosa incógnita não há de verificar-se senão no Novo Mundo.” (grifos da Gazeta)

Dito isto, o quase menino fez, solenemente, um juramento dirigido a seu mestre:

“Juro perante o senhor; juro pelo Deus de meus pais; juro por eles; juro pela minha honra e juro pela minha Pátria que não darei descanso ao meu braço, nem repouso à minha alma, até que tenha rompido as correntes que nos oprimem pelo poder espanhol!”

Ele é o jovem gênio americano que primeiro desmascarou o embuste da pretensa “superioridade” da civilização européia e jurou expulsar o Império que oprimia o seu povo e a sua Pátria. E cumpriu o juramento.

Falaremos mais sobre ele.


(1) Simón Bolívar – o Libertador; compilação, notas e cronologia Manuel Pérez Vila; Biblioteca Ayacucho – Caracas, Venezuela; Adipro (trad. Ruth Elizabeth Pucheta); Rio de Janeiro, 2007. Distribuição: Embaixada da República Bolivariana da Venezuela, Brasília, DF.

domingo, 9 de agosto de 2009

Gazeta em forma de e-meio 94

“Sete punhais no coração da América”

Esse poderio militar não é uma necessidade do mundo; é uma necessidade do sistema econômico que o Império impõe ao mundo” (Fidel Castro, Reflexões: Sete punhais no coração da América, 5/8/2009)

Jim Jones não é o nome de um mocinho-de-faroeste nem de um JJ texano biguebóz do gado ou do petróleo, tipo Assim caminha a Humanidade. Seu nome surgiu há poucos dias no cenário midiático imperial não como personagem de ficção, mas como “general, assessor de Segurança Nacional da Casa Branca”, justamente aqui, em Brasília, para dizer ao mundo que “os Estados Unidos não recuarão da negociação com o governo da Colômbia para a utilização de sete bases militares do país sul-americano” (Estadão, 6/8/2009). Não foi seu Obama nem dona Hillary, foi ele, este recém revelado ao respeitável público como porta-voz do Império, pronunciando-se (não declaradamente) em resposta a Chávez, que rodou a baiana e pôs a boca no mundo logo que soube da tramóia, e a Fidel, que publicou o texto aqui citado desde o título desta Gazeta.

Falou, ’tá falado; é assim que o Império se pronuncia perante suas colonias. Uribe, presidente da Colombia, o tal “país sul-americano” mencionado por Jim Jones, que corresse atrás de explicar às colonias vizinhas o que foi que assinou em Washington, às escondidas e às sombras do golpe de Estado em Honduras, para que o território de seu depauperado país fosse entregue de bandeja à instalação de mais sete poderosas bases militares imperiais em locais estratégicos, já para o ano que vem, a fim de cercar a Venezuela e “proteger” a Amazonia, incluindo a “nossa”, a “brasileira” (a dos velhos mapas dos meus tempos de estudante). E Uribe foi, batendo de porta em porta, com a sua cara de ratazana voadora, para dizer aos presidentes dos vários países que visitou na América do Sul, including Brazil: “Sou a pomba da paz”!

Ao mesmo tempo, Chávez dava uma longa entrevista coletiva à “imprensa internacional”. Perguntado sobre os EUA e Obama, ele respondeu: “Obama é apenas o presidente dos EUA, e o nosso problema não é com os EUA, nem com o povo norte-americano, nem com seus governantes; nosso problema é com o Império capitalista-sionista que vampiriza os povos do mundo inteiro, a começar dos próprios EUA.”

Em vista disso, a “imprensa internacional” (leia-se imprensa imperial) publicou, em editorial do diário El País (Espanha), que “Chávez tem mania de criar inimigos imaginários e só fala desse tal Império sobre o qual nunca diz ao certo de que se trata.”

Quanto a Fidel, a BBC Mundo assim se manifestou sobre o seu texto, em manchete de página de rosto de sua edição on-line: “Fidel Castro apoia o armamentismo na Venezuela”. Esta foi a interpretação “nada capciosa”, além de elevada a título e a manchete, que o sisudo veículo inglês deu à seguinte passagem do texto:

“(...) obrigam inelutavelmente a Venezuela a investir em armas recursos que poderiam ser empregados na economia, nos programas sociais e na cooperação com países pobres e menos desenvolvidos”.

Quer dizer, seria a Venezuela, estimulada por Fidel, a responsável pelo armamentismo e as conflagrações na Colômbia, que se constitui numa ameaça real à América. As mais de 800 bases militares dos EUA-Inglaterra-Israel, espalhadas por todo o mundo, devem ser apenas ajudas humanitárias desses três beneméritos países, pois são ameaças só na imaginação de Hugo Chávez.

As invasões e desestabilizações perpetradas em todas as partes do mundo, a partir de tais bases militares, com níveis de matanças e de desastres humanitários e ambientais que são superados a cada passo histórico, desde as bombas de Hiroshima e Nagazaki (o Império acaba de comemorar 64 anos do genocídio, como ato inaugural da nova e atual fase da sua ação belicista) não podem por em dúvida as “intenções pacíficas” das sete bases militares que estão sendo construídas na Colômbia (Chávez mostrou fotos de satélite de todas elas, em obras), as quais Uribe, afilhado e predileto do mundialmente célebre narcotraficante Pablo Escobar, vem solertemente “explicar” a seus vizinhos.

Ah, trata-se do combate ao “terrorismo” e ao “narcotráfico”... Ora, todos sabemos que, desde que começou esse “combate”, há cerca de quatro décadas, a Colômbia tornou-se o maior produtor mundial de cocaína e de terroristas (a imprensa os chama de “paramilitares”), e os EUA, o maior consumidor de drogas ilícitas e principal usuário e patrocinador dos “serviços” desses “paramilitares”.

As diferenças deste gazeteiro com a imprensa e o pensamento dominante nas elites do nosso país, se é que ele ainda permanece nosso, começam pela postura autista de ambos em relação à barbárie imperial de que somos vítimas. Para a esmagadora maioria da inteligentzia brasileira – e vamos ser flexíveis com tal universo, incluindo nele políticos, tecnocratas, jornalistas, intelectuais, empresários, militantes, artistas, estudantes e até atletas, todos eles, os famosos, os poderosos, os influentes, ou não –, o Império capitalista-sionista, a que aludiu Chávez, simplesmente não existe!

Uma postura que implica, necessariamente, em ignorar a história toda desde o “descobrimento da América”, ou, pelo menos, desde que foram expulsos os espanhóis deste continente e decretado o fim do império português em nossa pátria. Pois, já no início do século XIX, em plena guerra contra o império espanhol, Simon Bolívar profetizava: “Os Estados Unidos estão fadados a encher a América de sangue e miséria, em nome da Liberdade.”

E Fidel Castro, talvez o político mais bem informado e mais experiente que ainda vive neste planeta, há mais de cinquenta anos protagonizando papéis centrais ou de destaque na política internacional e de combate ao Império, encerra assim a sua sábia análise:

“A pátria de Bolívar é hoje o país que mais lhe preocupa (o Império), por seu papel histórico na luta pela independência dos povos da América. Os cubanos que prestam ali serviços de especialistas em saúde, educadores, professores de educação física e esporte, informática, técnicos agrícolas e outras áreas, devem dar tudo no cumprimento de seus deveres internacionalistas, para mostrar que as pessoas podem resistir e ser portadoras dos princípios mais sagrados da sociedade humana. Caso contrário, o Império irá destruir a civilização e a própria espécie.”

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Gazeta em forma de e-meio 93

A questão semântica

No brilhante estudo A sociologia dos países desenvolvidos, escrito no início da década de 1970, Álvaro Vieira Pinto disseca e desmonta a estratégia de dominação dos países “desenvolvidos” pelas artimanhas e corrupções dos termos da linguagem corrente, no sentido de retirar o impacto ou ocultar a realidade que vem implícita aos significados dos termos e palavras usados no cotidiano pelos povos e sociedades.

Assim, o próprio termo “países subdesenvolvidos”, que inclui em seu significado um antagonismo (real) com o termo “países desenvolvidos”, no sentido de espoliado versus espoliador ou oprimido versus opressor, vinha sendo, então, substituído por “países em desenvolvimento” ou “países em vias de desenvolvimento”, implantando aí a idéia de uma inexistente e irreal coincidência de paradigmas entre nações antagônicas, ou seja, a idéia de que as “subdesenvolvidas” possam vir a ser “desenvolvidas”, coisa que já se sabe impossível a partir da estratégia mesma de dominação imperialista que procura impor artificialmente a ardilosa “evolução” semântica.

Vieira Pinto desvenda incontáveis ardis do arsenal linguístico que é permanentemente operado por sociólogos a soldo, ou sociologetas, como ele os define, que formam, a serviço dos senhores imperiais, o batalhão de proa da luta dialética e linguística que historicamente mantêm com os escravos e as colônias, no sentido de retardar ao máximo o que já sabem ser o inevitável, isto é, a libertação definitiva destes últimos. Ele estuda os conceitos engendrados nesses laboratórios incrustados em universidades públicas e privadas da matriz e das colônias, onde se formam as elites do pensamento imperialista e os lacaios de que necessitam, os quais vão sendo aplicados às análises sociais e econômicas que são difundidas como “científicas” e aceitas como válidas nos meios oficiais e pela mídia hegemônica. Conceitos de “bem” e de “valor”, de “consumo”, a sociologia de “grupos”, a “iniciativa privada”, os “índices” de grandeza e de crescimento, termos tais como PIB, renda per capita, e outros que frequentam as “teses” e escritos dos economeutas acadêmicos ou jornalísticos, são desmontados um a um no genial estudo que este mestre do pensamento revolucionário nos legou:

“O desenvolvimento é um fenômeno social global, de modo que índices artificialmente concebidos para dar posição privilegiada às potências imperiais nada representam a não ser isso mesmo, a confirmação da intervenção dos economistas do extrato celeste para produzirmos os sofismas econômicos em forma de complicados indicadores destinados a deixar sempre uma imagem radiosa das nações ricas exploradoras do trabalho das infortunadas. A renda per capita é uma pura manipulação aritmética, que só adquire sentido no contexto de uma economia capitalista; para cuja glória, aliás, foi imaginada.” Mais adiante, Vieira Pinto propõe o trabalho per capita como índice de real interesse econômico, em particular, para os países subdesenvolvidos.

Mais recentemente, é o uruguaio Eduardo Galeano, outro grande combatente nessa batalha das idéias, que vem tratando a questão semântica numa série de crônicas televisivas intituladas O mundo ao revés, que este gazeteiro tem visto publicadas na VTV venezuelana. Numa delas, subtitulada Assassinando as palavras, Galeano anota as deformações semânticas que vão sendo sub-repticiamente introduzidas pela mídia hegemônica: “Agora a traição se chama realismo, o oportunismo se chama pragmatismo, o imperialismo se chama globalização, e às vítimas do imperialismo chamam de países em vias de desenvolvimento. O capitalismo agora se chama economia de mercado; os trabalhadores já não mais são seres humanos, são recursos humanos; a tortura torna-se ora uma coerção ilegal ora um método de interrogatório nos limites da legalidade. Os dicionários também têm sido assassinados pelas organizações criminosas que governam o mundo nessa ditadura invisível onde banqueiros e militares são chamados de comunidade internacional; as palavras já não dizem o que dizem”.

Estamos hoje imersos nos estertores mais desesperados dessa deformação semântica manipuladora, em todos os contextos sociológicos possíveis.

No plano político, por exemplo, assistimos neste momento uma das mais histriônicas de suas manifestações, que é como a mídia hegemônica tem procurado “informar” o respeitável público sobre o caso de Honduras. O termo mais elementar que se conhece para definir o que ali ocorreu é golpe de Estado; mas os sociologetas, economeutas e foliculários encarregados da redação das matérias estão proibidos de usá-lo. E não se entendem: uns dizem que foi uma transição forçada, outros que foi uma sucessão atípica, outros que foi uma substituição provisória. Quanto ao ditador, palavra que define corretamente o usurpador do poder democrático mas que também está proibida de ser usada no caso, não sabem ao certo se se trata de um presidente interino, um presidente substituto, um presidente nomeado pelo Congresso ou um presidente temporário. Numa mesma página de jornal ou revista da mídia hegemônica é possível encontrarmos dois ou três desses novos termos ou até todos eles.

No plano militar, já estamos enfastiados, desde o 11 de setembro de 2001, com a substituição da palavra invasão por termos como guerra preventiva, luta contra o terrorismo, operação militar de precisão cirúrgica, entre outras “criações” sociologéticas contemporâneas.

Até a democracia, velha de guerra, vem sofrendo uma nova e recentíssima deformação semântica em seu significado elementar, que é o poder que emana do povo, ou do povo como fonte única e soberana do poder. Dona Hillary - ah, ah, ah, que hilária! (os norte-coreanos zombam dela dizendo que “ela mais parece uma aposentada fazendo compras no shopping”) -, disse outro dia que “as eleições não mais significam a garantia de democracia em seus resultados”. Neste sofisma, ela explica que a tal “comunidade internacional” e os “meios de comunicação” é que são os mais indicados para atestarem o caráter democrático dos governos, “pois os povos podem ser enganados por ditadores que eventualmente possuam facilidade de comunicação com as massas”.

Refere-se, evidentemente, ao ditador Hugo Chávez, este, sim, um verdadeiro ditador que vem enganando o povo da Venezuela em mais de 10 eleições sucessivas, todas com inquestionável isenção e testemunhadas por várias organizações internacionais de indiscutível imparcialidade. Assim, a guerra preventiva já está sendo articulada para devolver a democracia à Venezuela através da Colômbia, onde os EUA pretendem montar mais seis bases militares no próximo ano, as quais, além disso, vão combater uma outra guerra, a guerra contra o narcotráfico, também na Venezuela e alguns países “suspeitos” das vizinhanças como a Bolívia, o Equador e a Nicarágua.

Ocorre que nem a Venezuela e nem os países “suspeitos” já não produzem ou traficam narcóticos ilegais; atualmente o maior produtor e traficante mundial é justamente a Colômbia, seguido pelos EUA, que, por sua vez, é também, e de longe, o maior consumidor de drogas do mundo. Porém, a economia de mercado, em sua crise permanente, sobrevive agora, em modo de respiração artificial, do mercado de drogas ilegais. Eis porque é necessária a guerra preventiva contra Chávez, pois o governo dele acabou com o mercado de drogas no seu país. Além disso, o butim de guerra na Venezuela é altíssimo: uma das maiores reservas de petróleo do mundo. O leitor da Gazeta terá facilidade para entender tais coisas, mas, havemos de convir que são dignos de pena os pobres leitores e espectadores dos veículos de informação ou de comunicação da mídia hegemônica.

No entanto, Álvaro Vieira Pinto nos ensina que tais movimentações semânticas têm caráter meramente superficial por serem um “simples resultado reflexo de um processo dialético real muito mais profundo e complexo, o da comunicação entre o pensamento de dois indivíduos racionais”, no qual, para ele, “só existe um sujeito capaz de fixar a linguagem, que é, obrigatoriamente, o homem trabalhador”, numa lição importante que conclui o seu extenso e bem fundamentado trabalho, e que ele mesmo resume assim:

“O escravo é o ser sociológico lexicogênico. Compreende-se imediatamente a justeza do enunciado quando percebemos o fato evidente de caber ao escravo, isto é, às massas operárias, que pelo trabalho dão fundamento ao contínuo desenvolvimento da linguagem, plasmarem o tipo humano futuro, com todas as características originais, entre as quais sobressaem as novas modalidades expressivas. O senhor não possui essa qualidade, não pode incluir entre os seus títulos de nobreza o de representar o fator social lexicogênico, e isto pela elementar razão de não trabalhar.”

Deduz-se daí que o aparato bélico-linguístico que os senhores da guerra e do dinheiro tentam impor à Humanidade a ferro e fogo não é mais que a reação desesperada de quem já se percebe no limiar da derrota e da desaparição enquanto fator ou fenômeno social, e não têm outra saída senão se valer de todos os meios que possuem para frear as forças que os acossam e retardar o inevitável processo evolutivo-revolucionário da Humanidade. Para tanto, tentam validar a mentira descarada e o terror como instrumentos de intimidação, e se valem de todas as armas que detêm, entre elas a da manipulação semântica. É como disse Eduardo Galeano, em outro de seus programas televisivos:

“A tortura, que agora está sendo aceita e alardeada pelos meios de comunicação como instrumento eficaz no combate ao terrorismo, é, na verdade, um velho instrumento das elites para semear o terror na sociedade; uma tática repressiva para prevenir o delito da dignidade.”