terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Gazeta em forma de e-meio 110 - Especial

Os dois “Pepes” de 29 de novembro

Magistral! É a palavra (com a exclamação) que, na opinião deste gazeteiro, melhor poderia definir a cobertura da TeleSur das duas eleições, melhor dizendo, duas sagas de dois povos tendo por motivo central pleitos presidenciais, ambas importantíssimas para as Américas e o mundo e que se deram domingo passado. Uma no Uruguai e a outra em Honduras. Foi uma aula de jornalismo televisivo da melhor qualidade, e este que aqui escreve, declara, de início, que foi a primeira vez em sua vida que presenciou algo dessa envergadura por televisão, em todos os planos de competência em que podem interatuar o tema e a linguagem: o político, o jornalístico, o intelectual, o profissional, o técnico, o tecnológico, o informativo, o audiovisual e, especialmente, o histórico.

A TeleSur distribuiu bem equipadas e bem preparadas equipes de reportagem nas capitais e em diversos pontos estratégicos do interior dos dois países. Ancorada em Caracas por alguns de seus melhores profissionais de comunicação, muito bem assessorados por analistas e comentaristas do mais alto nível e por uma editoria de pesquisa cuja eficiência e agilidade deixam no chinelo as “grandes” redes mundiais, ela foi capaz de narrar com uma incrível precisão jornalística e com uma impressionante qualidade editorial tudo o que de mais importante, de mais relevante, de maior interesse e de fundamental valor noticioso e informativo ocorreu nas vinte e quatro horas daquele dia histórico, nos dois países, e, praticamente, em tempo real. Demonstrou, assim, que o veículo televisivo, quando utilizado para as suas finalidades mais nobres e essenciais e por uma consciência profissional dedicada, capaz e incorruptível, é uma das mais valiosas ferramentas de libertação através do conhecimento e da informação que a Humanidade jamais teria construído para si mesma. E talvez a mais eficaz.

A História também colaborou enormemente para que os acontecimentos se tornassem mais interessantes e desafiadores ao gigantesco esforço de cobertura a que se propôs a TeleSur e também para que, somente ela, entre todas as demais empresas do gênero em todo o mundo, fosse capaz de enfrentá-lo e vencê-lo com tamanho sucesso.

É que, por uma coincidência sem precedentes, pelo menos até onde pode alcançar a memória deste gazeteiro, nos dois países, situados geograficamente quase que nos extremos opostos do continente latino-americano, e no mesmo dia, aconteceram, em simultâneo, duas jornadas eleitorais de natureza completamente distintas. Dir-se-ia, tal fora o contraste entre os dois acontecimentos, que um era o negativo do outro.

No Uruguai, sulista e oriental, dava-se uma verdadeira festa democrática: era o segundo turno de uma campanha eleitoral que brilhou por suas virtudes realmente democráticas, apesar da desigualdade midiática em favor do candidato derrotado contra o vitorioso candidato das massas populares, apoiado pelo atual governo. E o presidente em exercício, Tabaré Vasquez, deu declarações no local onde votava.

Em Honduras, centro-americana e caribenha, o Império investia todas as fichas que ainda lhe restam de prestígio e força política em Nuestra América numa ditadura que tentava uma farsa eleitoral para se legitimar como “poder democrático”, contra as massas populares revoltadas pelo golpe de Estado que depôs o presidente que elegeram e lhes impôs um estado policial cuja crueldade, estupidez e violência só são comparáveis aos registros mais conspícuos de desumanidade genocida que se conservam na memória histórica das tragédias coletivas. E o presidente deposto, preso na Embaixada do Brasil em Tegucigalpa, ilhada por centenas de militares fortemente armados e com ordens de matá-lo se pisar um pé fora da embaixada, não pôde sequer exercer o direito de votar.

Em comum, nos dois casos, como magistralmente demostrou a TeleSur – com forte impacto mundial que foi capaz até de alterar a agenda da cúpula ibero-americana que se inaugurava também, no mesmo dia, em Estoril, Portugal, e na qual o tema de Honduras estava sendo relegado a planos secundários por inciativa imperial – foi a pujança dos dois povos dos dois pequenos países na luta heróica que travaram, em simultâneo e igualmente inarredáveis no propósito decidido de conquistarem soberania e liberdade.

A grande façanha da TeleSur residiu, principalmente, na competência jornalística de trazer toda a substância da verdade contida nos três parágrafos acima de forma plena e indiscutível. Seus repórteres foram a todas as instâncias do fazer político: movimentos sociais, sindicatos, lideranças de todos os matizes ideológicos e classes sociais, políticos do governo, da oposição e independentes, militares, autoridades e populares de vários níveis hierárquicos e sociais, formando um painél de grande riqueza documental acrescido ainda de material colhido em veículos de mídias comunitárias e alternativas, da mídia hegemônica ou produzido pela própria editoria de pesquisa com vasta iconografia, info-gráficos, filmes de arquivo e o escambáu.

No Uruguai víamos imagens mais comuns ao tipo de evento: muitas bandeiras tremulando, povo nas ruas dançando e cantando lemas e refrões de campanha, agitação nas praças, alegria da vitória e choro da derrota. O carismático líder revolucionário José “Pepe” Mujica, ex-tupamaro, ex-guerrilheiro, preso político por 16 anos, 13 dos quais incomunicável e em regime de solitária, foi o grande vencedor do pleito, com 53% dos votos, contra o oligarca Luis Alberto Lacalle (42%), que, aliás, soube digerir a derrota com a nobreza de um belo discurso de reconhecimento da vitória de seu oponente. Um comparecimento maciço de quase 90% dos eleitores cadastrados auferiu uma legimitade democrática sem precedentes ao resultado do pleito naquele país.

Em contraponto, Honduras vivia uma caricatura pseudo-eleitoral jamais vista em lugar algum. Militares, policiais e mercenários ocupavam as ruas vazias e, se alguma manifestação popular surgisse diante deles, caíam de pau violentamente, atacando-a com jatos de água, bombas de gás, cacetetes e a tiros de bala de borracha e até de balas verdadeiras. Pelo menos um morto, mais de 40 desaparecidos (inclusive crianças) e cerca de três centenas de presos foi o saldo da repressão naquela jornada, dado ainda como parcial por órgãos da resistência e entidades de Direitos Humanos. Os eleitores se recusavam a sair para votar e houve comandos de policiais e de civis armados, os “camisas brancas” (e “calça de qualquer cor”), que os tiraram de casa à força de bombas de gás lacrimogêneo lançadas dentro de seus lares para os levarem às urnas a ponta de fuzil. Desesperados com a abstenção quase total e flagrante, diante de todos os veículos de imprensa presentes, o Tribunal Eleitoral chegou a mudar as regras no meio do jogo e, alegando que não havia mais a tinta indelével com a qual os eleitores deveriam marcar os dedos quando votassem para que não pudessem votar duas vezes, aboliu a necessidade dela, e nisso já passava do meio-dia. Dessa forma, além de facilitar a fraude, neutralizava-se a “manifestação das mãos limpas” que o povo prometia para depois da jornada, exibindo-as, em multidão, à imprensa.

Os comitês de Direitos Humanos que monitoravam por amostragem os locais de votação acusavam uma presença de apenas 17% dos eleitores às duas da tarde, número que subiu para 22% ao final da jornada, mas com denúncias de gente votando até seis vezes na mesma urna e de caminhões e ônibus trazendo salvadorenhos e gualtemaltecos para votarem nas cidades fronteiriças. Pouco antes de fecharem as mesas, a TeleSur mostrou muitas urnas, que eram transparentes, quase vazias. Nenhum órgão idôneo de observação eleitoral aceitou participar da farsa, e os golpistas então convidaram um bando de empresários, mafiosos, narcotraficantes, políticos corruptos, congressistas republicanos dos EUA, lacaios de países diversos, e outras lindezas “democráticas” para exercerem o papelão. Para se ter uma idéia mais amena da qualidade dessa “observação eleitoral”, o “representante” brasileiro convidado foi o deputado federal Raul Jungmann. “Tudo pela democracia!”

Às seis da tarde, Manuel Zelaya falava com a TeleSur por internet e dizia que o Comando da Resistência, através de monitoramento em todas as urnas, verificara um índice de abstenção entre 65% a 70% dos eleitores cadastrados. Os golpistas só apareceram em cena nas primeiras horas do dia, com Micheletti, cercado por vasto esquema de segurança militar, sorridente e exibindo cinicamente para a imprensa o dedo mindinho da mão direita sujo de tinta indelével. Depois, desaparareceram e não eram encontrados em lugar nenhum. Nem os candidatos que aceitaram participar da farsa eram vistos nas ruas ou encontrados pela imprensa. Simplesmente sumiram.

As matérias produzidas na praça em frente ao Tribunal Eleitoral eram feitas por repórteres solitários; não havia uma alma nas ruas de Tegucigalpa, que era um deserto já às oito da noite. Os golpistas só apareceram novamente depois da meia-noite, numa sessão do Tribunal Eleitoral, que mais parecia um velório, para informar à imprensa e “ao mundo” que as eleições foram um “êxito total” com o “comparecimento maciço do eleitorado”, o qual alcançara 61% de presença nas urnas, fato inédito naquela república de bananas, onde o máximo até hoje alcançado foi de 55% dos eleitores na eleição de Zelaya, em 2004, e que, pelas imagens de arquivo exibidas pela TeleSur, transformou Honduras numa só festa popular, com o povo todo vestido de vermelho inundando as ruas de Tegucigalpa e das cidades do interior. Pouco depois daquela “sessão maldita”, o Tribunal declarou a “vitória” de Porfírio “Pepe” Lobo, um empresário mafioso local, com 38% dos “votos válidos”, sem contudo dizerem quantos eram esses votos.

Imediatamente após o comunicado, esse tal “Pepe” recebeu os parabéns e o reconhecimento da sua vitória eleitoral, “pela livre e soberana escolha do povo hondurenho e dentro da mais absoluta normalidade democrática”, por parte dos EUA, Israel, Colômbia, Costa Rica e Panamá, ou seja, quase todo o “eixo do bem”.

Mas de tal “êxito”, eles, os golpistas, os seus mentores e os seus “eleitos”, não têm foto, não têm vídeo, não têm festas, não têm testemunho idôneo. Só o que possuem são as fraudes inconstitucionais, descaradas e falsificadas, desde a célebre “carta de renúncia” de Zelaya, os encômios de seus próprios e desacreditados veículos de mídia, e... a Quarta Frota, esta, sim, como diria o velho Sette de Barros, “um argumento de peso”.

Quanto ao “Pepe” uruguaio, cercado por centenas de milhares de seus compatriotas em meio a festejos e foguetórios até altas horas da madrugada em Montevidéu, debaixo de uma chuvarada, desses países que se proclamam exemplos de democracias, nem um “boa sorte” recebeu. Mas a internet foi inundada de mensagens de congratulações por parte das democracias do mundo, encabeçadas pelos países da Alba e América Latina.

No excelente programa de fechamento do intenso dia de trabalho da TeleSur, moderado pela bela e inteligente Patrícia Villegas, e com a participação de vários escritores, intelctuais, jornalistas, artistas e políticos das três Américas e até de Eduardo Galeano, que ainda há pouco tempo se recusava a dar entrevistas a televisões, numa síntese das imagens do dia e nos comentários lúcidos de todos concluiu-se que aquele fora um dia de grande vitória popular nos dois países. E ontem, segunda-feira, Tegucigalpa foi completamente ocupada pelo povo em uma imensa passeata na qual o Comando da Resistência proclamava a sua vitória pela abstenção popular e o não reconhecimento das eleições, as quais considerava um “novo golpe de Estado”. A luta continua.

A Gazeta agradece, TeleSur, e dá os seus parabéns pelo trabalho. Magistral!.