terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Gazeta em forma de e-meio 111 – Especial

Caro José Sette,

Respondo, pela Gazeta, ao seu texto de justo desabafo, que segue na íntegra (e com os erros corrigidos), porque creio que o papo seja de interesse geral e as informações nele contidas são importantes e devem ser divulgadas. Suprimi apenas a crítica de Luiz Rosemberg, pois já a publiquei aqui. Começo por uma frase que o saudoso Rogério Sganzerla gostava de citar, parafraseando Fidel Castro, mesmo sabendo que ela não diminuirá o seu desânimo e até corro o risco de que ela o aborreça ainda mais.

Mas vou insistir: “a História está a nosso favor”.

Com ela, eu quero lembrá-lo de que você não está só, que o seu caso não é único e que eu me considero tão penalizado quanto você e os demais companheiros que atravessamos o interminável deserto sem miragens (isto é, sem visões, sem cinema) em que se transformou a comédia desumana da criação nacional, na infeliz quadra das três últimas décadas.

Não é que antes estivéssemos em terras férteis; já nos havíamos com um deserto, mas, com belas miragens e alguns oásis. Lembro-me bem que, juntos, no último oásis em que se constituiu a Oficina Goeldi, quando, em 1980, abrigou o Encontro de Cinema Independente que o Sylvio Lanna agitou aqui em BH, tentamos – e conseguimos – plantar coisas, e fazê-las vingarem. Nós, que na juventude recusamos vender nossas almas ao diabo acreditando que seríamos capazes de resgatar o mundo de suas mãos, enfrentávamos de peito aberto todas as tormentas, e de muitas saímos vitoriosos – e como! E foi assim, cada um por sua via, mas ambos crédulos, sem mais nada a não ser a confiança em si mesmos, é que adentramos corajosamente o deserto, esse labirinto sem paredes, em que ainda permanecemos buscando uma saída.

Quando, depois de alguns passos irreversíveis na aridez espinhosa em que nos metemos quase sozinhos, percebemos a derrota, até tentamos negociar com o diabo, mas era tarde... Eu, mudando-me com a Oficina Goeldi para São Paulo e, anos depois, para o Rio. Você, entregando de mão beijada a sua obra cem por cento brasileira e a sua própria carreira de cineasta nas mãos de Mefisto em pessoa, na doce crença, talvez por não ver outra alternativa no horizonte, de que, por um milagre que jamais aconteceu, ele se tornaria o seu anjo da guarda. A ambas, obra e carreira, Mefisto desde então sequestrou do público (pagante e não pagante). O inferno só negocia com carne fresca e tenra, José, e nós já estávamos para lá de maduros. Mesmo sabendo que este inferno latino-americano é um inferno subdesenvolvido, morno e que só tem para negociar mal resolvidas questões de pecúnia (nunca a Glória – esta é capital exclusivo dos diabos do norte), nós queríamos, sim, e tentamos negociar. E só conseguimos a lista negra, compadre.

No entanto, se não podemos culpar a ninguém, exceto a nós mesmos, pelos dissabores que sofremos, não caminhamos em vão: se ainda não vingaram nem deram frutos os nossos plantios dessa quadra, a verdade é que em nenhum momento deixamos de cultivar sementes raras, bravas e resistentes que haverão de brotar mesmo no deserto e alimentar os passos peregrinos dos que virão depois de nós. É a História. Nós enganamos o diabo, José. Amaxon é filme para uma platéia futura, a que um dia renascerá da que morreu com Glauber Rocha, em 1981.

Cuba tem sérios problemas estratégicos para enfrentar e não pretende aumentá-los escolhendo filmes brasileiros para seus festivais de cinema. Mais fácil para Cuba é deixar que o diabo daqui o faça. Por sinal, o mesmo que decide quais filmes entram no festival potiguar, no das peruas de Tiradentes e no de Quixeramobim. Você crê que alguém decide o que da produção nacional vai ser exibido nas telas, as pequenas e as grandes, daqui e de fora, a não ser ele (ou “eles”, como diria o Fredera)?

Recordo-me que, no Encontro de Cinema Independente, era forte o espírito do Glauber, mesmo sem que estivesse presente, e o Sérgio Santeiro fez uma inesquecível defesa da obra dele, desfazendo muitos dos aspectos negativos da criativa polêmica que então se travava entre Glauber e os independentes, com as proas de Júlio e de Rogério.

O Festival de Brasília de 1981, que, com Um Sorriso Por Favor, ganhamos com valentia oswaldiana e glauberiana, foi o primeiro sem Glauber, que fora assassinado há poucos meses, e ali percebemos, como nunca antes, a falta que ele fazia (e faz!). Glauber possuía o dom inigualável de denunciar, desmascarar e desmontar, com impiedosa habilidade, toda a charlatanice velhaca dos que tentam frustrar, fraudar ou mudar a História, como os atuais organizadores de festivais que nada sabem ou não aprenderam daqueles que os antecederam e que deveriam reverenciar - para citar só alguns: Cosme Alves Neto, Wilson Coutinho, Frederico Morais, Ronaldo Brandão, entre outros mestres em arte e cinema que tivemos o privilégio de conhecer de perto, e recebendo deles a consideração e a admiração com que sempre contemplaram a nossa ousadia criadora.

O que já é definitivamente História e que muito nos orgulha. Por que alguém tentaria frustrar, fraudar ou mudar a História, se nenhuma dessas pretensões é possível de realizar-se, uma vez que o passado é imutável?

Elementar, meu caro leitor: é que a História está contra “eles”.

José, receba a solidariedade deste seu companheiro de sucessos e desditas; você, exímio escritor audiovisual, não precisa se desculpar por erros de ortografia e digitação.

Um forte abraço do

Mario Drumond


Segue a íntegra de seu desabafo:


AMAXON

Não queria mais falar sobre o complexo e misterioso sistema que movimenta o cinema brasileiro, mas, com as últimas notícias recebidas, não posso me furtar a algumas verdades e tenho que escrever, talvez, um último libelo sobre a ignorância dos organizadores de mostras e festivais de cinema por todo o país e também no exterior.

O cinema, para mim, mais que a literatura, é uma leitura sofisticada do saber humano aos olhos de um observador atento. Um observador que saiba ver e tenha visões.

Alguns observadores são distintos: um intelectual bem informado; um bom artista; um ser inteligente, alguns pretensiosos, outros destrutivos; um crítico pernóstico, invejoso; um taumaturgo apaixonado pela magia do audiovisual; um déspota disposto a por fogo em Roma; um anarquista desordeiro; um músico sensível e outro ordinário; um pintor de quadros e outro de paredes; um burocrata arrogante; um profissional libertino; um liberal punheteiro; prostitutas e madames, autores e estrelas. Qual destes personagens viu Amaxon?

Para cada espécie de observador existe um texto, um filme específico, que na certa ele vai se identificar e gostar, mas a grande maioria dos que observam a grande tela são diletantes, pessoas que entram na sala de cinema levadas pela mídia, hoje massacrante, das grandes empresas de comunicação.

Essas pessoas, da classe média, que não passam de 12 milhões de espectadores, fazem o público alvo para os grandes sucessos dos filmes nacionais e estrangeiros. São eles que geram o aumento da fortuna daqueles privilegiados que já estão muito ricos, produtores e exibidores, pois continuam produzindo no Brasil os seus filmes comerciais com os milhões necessários da renúncia fiscal. Pergunto: por que não se cria um cine-banco de investimento para os filmes que pretendem conquistar o grande público?

O processo político-cultural precisa urgentemente de uma reforma de base.

Digo isso para mostrar que os festivais de cinema no Brasil, também produzidos com valores superiores a um milhão de reais e incentivados com dinheiro da renúncia fiscal, deveriam continuar a existir, mas redirecionados ao observador atento às novidades do mundo cinematográfico, atento para o novo, em termos de estética e de linguagem, e tudo mais que o cinema contemporâneo e de invenção feito no país está criando - são geralmente filmes de baixíssimo orçamento, novos e experimentais -, e não unicamente direcionar o olhar inteligente para os filmes que têm todas as mídias à disposição, com lançamento simultâneo em salas por todo Brasil. Para que eles precisam dos festivais?

Não estamos falando de impedir que as grandes produções sejam exibidas nos grandes e pequenos festivais - são mais de cem festivais no Brasil -, mas, sim, de que cada festival tenha espaço para o cinema inventivo, visionário, poético, diferente daquilo que o público está acostumado. Um cinema de artesão. Na questão do filme Amaxon, meu único interesse era de exibi-lo, de graça, para um público seleto que freqüenta os festivais – nada mais.

Nunca se deveria recusar a exibição de um filme como este, que é, no mínimo, uma nova contribuição ao pobre universo das artes cinematográficas brasileiras, especialmente por ele ter sido realizado por um diretor – produtor – fotógrafo – roteirista – editor experiente e consagrado, com mais de vinte filmes de longa, média e curta metragem produzidos, alguns deles até bem premiados. Alguma coisa anda errada com as cabeças do poder neste país.

Faz muitos anos que não mandava meus filmes a nenhum festival de cinema. Eu já sabia quais eram os critérios adotados por todos eles – a exibição e seleção única dos filmes que possam interessar ao grande público, excluindo todos os outros que possam criar polêmicas desnecessárias e incômodas para a indústria do entretenimento.

Por insistência da família, preocupada com o meu isolamento, pedi ao jovem fotógrafo do meu filme que remetesse um DVD para os últimos três festivais que, no final deste ano, apresentavam-se abertos a novas inscrições. Pareceu-me interessante a experiência: Cuba – Natal – Tiradentes. E me preparei para o pior, pois fico arrasado quando recusam o óbvio irrecusável.

É quase um acinte: o filme foi sumariamente recusado, como eu previa, pelos três festivais.

Recusado três vezes pela ótica mercantilista, retrógada, mesquinha, insensível, colonizada, cega e estúpida de observadores de porta de festival, desatentos; principalmente os nacionais, como os de Natal e de Tiradentes. Pensando bem, eles estão certos em recusar o meu filme – polêmico, anarquista, novo, inteligente, poético, inventivo, provocador – diferente de tudo que tenham assistido.

Amaxon, para um amador, é hostil, hermético; é difícil aceitá-lo. Eu é que estou errado em ter mandado às considerações deles minha pequena obra-prima. Mas a recusa de Cuba, em mim, foi a que causou o maior espanto. Eles podiam até não gostar do filme, talvez, por não entenderem ou se sentirem agredidos com o enorme caralho que avança na mão de uma donzela angelical, numa dança erótica, em direção ao assustado burguês. Ou, quem sabe, chocados com a poesia louca, abstrata e inventiva da criação? Mesmo assim não tinham o direito de excluir um filme que é libertário, e também de vanguarda, e posso até dizer, comunista, pois trata o texto poético do massacre capitalista contra a liberdade de criação de uma escritora, uma artista, encurralada pela vida.

Espero que a cópia em DVD deste filme caia em boas mãos, nos bastidores da burocracia e seja pirateado, para que muitas pessoas, independente da censura dos festivais, possam assisti-lo. Pois, na certa não ficarão imunes ao que ele tem para dizer.

Quanto a vocês, organizadores de festivais estatais do cinema brasileiro, que nunca fizeram cinema, mas que vivem e muito bem dele e estão sempre acompanhados por jovens burocratas da arte, vampiros oriundos das universidades dos picaretas, vips que se espalham pelos brasis afora, viajando como consultores, censores, selecionadores, jurados e professores de oficinas de cinema, que vivem às custas do erário e que são muitas vezes também financiados por fundações estrangeiras e hostis aos interesses nacionais, é preciso que aprendam a respeitar os artistas mais velhos, os que ainda permanecem rebeldes e iconoclastas, mesmo sem compreendê-los, pois eles representam o seu futuro.

Cabo Frio, dezembro de 2009.

José Sette