domingo, 5 de dezembro de 2010

Gazeta em forma de e-meio 115

Uma notícia triste

O falecimento de minha mãe

Maria Elisa Pitanga Maia Drummond
(18 de março de 1922 - 23 de novembro de 2010)


Segue-se o discurso que pronunciei na Missa de Sétimo Dia:

O triunfo de Maria Elisa

Queridos amigos,

Escolhi abordar a memória de minha mãe - Maria Elisa Pitanga Maia Drummond - não pelo ponto de vista do filho ou das relações internas da família que ela maternalmente presidiu, mas pelo aspecto singular do que foi mamãe como pessoa, como ser social, como amiga que era de todos nós, porque é o lado dela que nos une e nos irmana neste momento e, por isso, creio ser o mais apropriado.

Sim, mamãe não era só a mãe de seus filhos; ela era também nossa amiga - e que amiga! -, a mesma que todos vocês conheceram tão bem quanto nós, seus filhos.

Eis aí uma particularidade entre as que considero mais encantadoras na vida dela. Não era necessário um relacionamento íntimo ou frequente com ela para conhecê-la bem. Mesmo os que tiveram poucas ou esporádicas oportunidades de contato pessoal a conheciam tão bem como nós, que com ela convivíamos intimamente.

É que seu espírito se mostrava inteiro a qualquer pessoa com quem se relacionava, desde o primeiro contato. Era um espírito de transparência cristalina, sem disfarces, sem segredos, sem opacidades, sem nuances, sem ardis, sem temores e sem couraças - um verdadeiro diamante que ela permanentemente lapidava para torná-lo cada dia mais puro.

E que não se diga que era ela ingênua. Pelo contrário, era versada em dois importantes idiomas, o francês e o inglês, além do nosso idioma pátrio, que dominava muito bem. E nos três desfrutou de boa leitura, conversação e escrita; pode-se dizer que tinha uma ilustração bem acima da média. Porém, disso jamais tirou vantagem ou afetação de superioridade; nem se valeu desses atributos em proveito próprio. Comunicativa e desinibida como era, ela usava-os com naturalidade para aproximar pessoas de distintas nacionalidades e culturas. No mais, ela os mantinha em si mesma, nos planos mais elevados do deleite intelectual e da satisfação espiritual.

Mamãe teve por paradigma a bondade - a bondade no sentido cristão, católico, apostólico, com base nos ensinamentos simples e sábios de Cristo, de amor ao próximo, de misericórdia e de humildade, em que ela elegeu como ícone de devoção a bem aventurança de Santa Terezinha -, e, por virtude, cultivou a pureza. Jamais permitiu que seu espírito se deixasse contaminar por ambições e perversões mundanas. Sua atitude era sempre a de dar sem pedir nada em troca. Nunca cobrou nem pediu nada para si mesma, nem mesmo um mero reconhecimento. Para o bem alheio, sim, pedia, até de joelhos se preciso fosse. Ela conjugava o verbo dar na acepção franciscana, despojando-o da insignificância material e efêmera para enaltecê-lo de relevância espiritual e divina.

Assim, suas alegrias eram causadas não por seus próprios sucessos, os quais nunca almejou nem perseguiu, mas pelos sucessos daqueles que ela amava. Como disse bem o meu irmão Marco Antônio, "ela comemorava até gol da Argentina". Sabia como fazer suas as vitórias dos seus, fossem os mais próximos ou os mais distantes. Às vezes, as desfrutava mais e melhor que os próprios bem sucedidos. E como era amplo e populoso o seu continente amoroso! Era do tamanho do seu coração: nele não havia lugar para intolerâncias nem preconceitos; todos eram bem-vindos e bem recebidos. Desta forma, simples e direta, fez com que a sua vida se passasse quase toda num mar de alegrias e numa sequência de festas.

Uma vida que pode ser representada por uma linha reta traçada entre dois pontos: o de seu nascimento e o de sua morte. Nela se destacam dois segmentos: o primeiro, como filha gentil e amorosa de seus pais, Achilles e Elizeta, até o seu casamento com papai (depois de 11 anos de namoro e noivado) e o segundo, como esposa e mãe, em regime de dedicação exclusiva - únicos títulos que ela se honrava em possuir (e ainda conquistaria os de avó e bisavó) -, do feliz casamento que durou mais de 61 anos. Mas foi sempre a mesma pessoa do início ao fim e fez com que a retidão de sua vida ocorresse toda cercada de luz, de paz e de alegre harmonia.

Uma biografia sui generis, sem registros de inimizades, desafeições e outros tumultos existenciais ou de relacionamento, inclusive sem as máculas dos chamados pecados capitais, os quais, ao que parece, era capaz de anulá-los até no seu entorno; mesmo a inveja, o mais incidente contra pessoas como ela, logrou não despertar entre aqueles que a cercavam. Um rio único, límpido e calmo, que correu retilíneo, da fonte ao mar, por entre a floresta inóspita.

O fato de ela a ter vivido em trânsito por um mundo tão adverso - mundo este que, apesar de tudo, para ela fora o que abrigava os seres que ela soube amar, e por isto mesmo, sempre haveria de ser um mundo de esperanças - foi, para mim, e estou certo que para ela também, a sua grande vitória; um verdadeiro triunfo, talvez o mais significativo dos que se podem obter na vida terrena. Como isto foi possível a partir de pessoa tão frágil e tão desarmada como mamãe para esta vida tão dura, espinhosa e difícil como a em que vivemos?

Penso que temos parte nele. Mamãe se sabia muito bem protegida pelos seus, pois neles depositava absoluta confiança. Além de papai, seu mais próximo guardião, na dedicação do esposo que não permitia que a ela nada faltasse e que daria a vida para salvá-la de qualquer ameaça, nós, igualmente, como um exército de guardiães voluntários, procurávamos quitar a dívida espiritual que assumíamos com ela por sua bondade e generosidade, protegendo-a sempre que pudéssemos e onde estivéssemos. Ai de quem levantasse um dedo que ameaçasse Dona Maria Elisa! E sempre havia um de nós por onde quer que ela passasse. Assim, ela atravessou incólume durante os seu 88 anos, oito meses e quatro dias de vida a selva selvagem em que se transformou a existência urbana deste nosso planeta, trilhando-a firme e em linha reta. E, por mais vulnerável fosse tal existência quase somente espiritual e sensível, nós a protegíamos como um valioso bem que, em parte, conquistáramos através da amizade. E nos era muito valioso mesmo!

É este triunfo que aqui, depois de sete dias da dor que nos causou a sua partida, devemos comemorar como sendo de todos nós, pois com ele Maria Elisa, Dona Maria Elisa, mamãe, ressurge em nós como nossa mãe celestial e nos faz todos irmãos, tal como ela queria, e por tal pleito dedicou a sua vida dadivosa. Um triunfo da fé, dirão os religiosos; um triunfo da virtude, dirão os humanistas. Talvez, antes de tudo, um triunfo do amor, pois, como Santa Terezinha, a vocação dela era o amor.

Para terminar, faço aqui uma revelação, possivelmente a única desta oração, toda composta com fragmentos da vida de mamãe, que tão bem conhecemos:

Agora, que ela ultrapassou o último portal da sua bela existência, eu a posso ver, no pleno gozo do seu-nosso triunfo, na melhor das imagens que, em minha opinião, a literatura universal teria nos legado para representá-lo.

É aquela que a imaginação de Dante construiu para exaltar a sua Beatriz triunfante, como um novo facho de luz que se acrescenta à luminosíssima cúpula celestial no mais perto de Deus e mais elevado patamar do Paraíso, presidido pela Virgem Maria. Eu posso ver mamãe lá, sendo recebida com as bençãos de Nossa Senhora e de Santa Terezinha, e, humildemente, tomando o seu merecido lugar naquele cenário deslumbrante. De lá ela nos abençoa e se sente imensamente grata a todos nós por tê-la ajudado a ter sua morada eterna no lugar onde sempre desejou. E com aquele sorriso sereno e contagiante e a simplicidade de sempre, que são duas de suas mais conhecidas virtudes, outra vez ela nos diz:

Muito obrigada!


Igreja de São João Evangelista, no bairro da Serra,
em Belo Horizonte, 29 de novembro de 2010.