domingo, 27 de março de 2011

Gazeta em forma de e-meio 117

É difícil, Rogério!

Desculpe-me, companheiro, mas não resisti ao trocadilho. Veio-me imediatamente à memoria aquele dia em que caminhávamos por uma das ruas de Ipanema, não sei se a Barão ou a Nascimento, quando demos com um certo edifício que exibe um nome pomposo numa fachada medíocre: "Edifício Marcel Proust". E você, na mesma hora, saiu com uma das suas: "Ah, então era esse o ‘tempo perdido’?!"

Era muito engraçada a maneira com que você soltava (ou exclamava) seus chistes, quase sempre em interrogações. Não nos restava senão dar boas gargalhadas entre as muitas que demos pelas ruas e becos da amargura naqueles cinco anos da primeira e infeliz metade da década de 90, em que nossos destinos se cruzaram no Rio de Janeiro. Ambos penávamos um injusto ostracismo e uma imerecida maldição por conta de nossas rebeldias irmãs e revolucionárias que, desde os anos 60/70, vimos cometendo em nome da resistência cultural. Pelo menos, aquele não foi um tempo perdido para nós.

O que você não podia imaginar naquela hora é que ia também virar nome de edifício, Rogério. Sim, o nome do seu livro agora publicado - e este é o motivo desta segunda carta - foi intitulado Edifício Rogério. Não se esclarece o que motivou esse nome, digamos, exótico (para não dizer esdrúxulo - você o vetaria, claro), mas na capa do estojo de papel-cartão (o livro são dois livros dentro dele) imprimiram uma foto de você todo sorridente na comemoração dos seus sete anos de idade, diante de um bolo de aniversário em forma de edifício onde vão os dizeres: "Edifício Rogério". Não há, também, explicação do que isso tem a ver com o conteúdo. No primeiro livro são publicados 29 de suas colunas no Estadão e, no segundo, 28 delas na Folha de São Paulo.

Não posso dizer que o conheci bem naqueles anos de convivência, mas o pouco que conheci basta para que eu diga que você NÃO era um intelectual do tipo "meus oito anos" ou "minha terra tem palmeiras". Sua obra, sim, posso dizer que a conheço bem, tanto a cinematográfica quanto a literária, e nela nunca encontrei uma só referência saudosa de sua "infância querida" ou de sua terra natal. E em sua residência, pelo menos enquanto a frequentei, Joaçaba sequer tinha o status de "uma fotografia na parede".

Não estou dizendo que você abjurava ou se envergonhava das origens provincianas e pequeno-burguesas em que viveu a infância e a adolescência. Penso que simplesmente as guardava para si, num silêncio tímido. As revelações e insights que o iluminaram em São Paulo abriram para você um universo tão completamente novo e tão afastado daqueles cenários quanto você e sua obra eram distantes de pieguices sentimentais.

Gilberto Vasconcellos costuma dizer que os cineastas brasileiros que se destacaram na década de 60/70 eram quase todos "filhos-de-algo". Uns tinham pai, outros mãe, ou avô, ou tios com nomes e sobrenomes conhecidos, e que volta e meia frequentavam a balbúrdia midiática e festiva em torno deles e de seus filmes. Mas você, não. Os Sganzerla nunca vieram para o baile (e acho que não aceitariam o convite), nem havia entre eles, antes de você, alguma celebridade. Você surge como um cometa no cenário nacional, a partir de São Paulo, sozinho, sem pai e sem mãe, e foi assim até o último de seus dias. “Esse desenraizamento influiu em sua carreira, ou melhor, em sua correria, em sua errância de cineasta”, escreveu Gilberto no prefácio de Tudo é Brasil.

A definição da capa (e das ilustrações, quando se justificam - o que não é o caso desse “edifício”) é um dos trabalhos mais importantes de um editor de livros. Com certeza, os arquivos do Estadão e da Folha conservam fotos de você trabalhando na redação, ou na gráfica, ou na máquina de escrever (em que você era bamba), ou ao lado de conhecidos nomes do jornalismo (como o de Décio de Almeida Prado, seu padrinho de iniciação), que dariam ótimas capas e ilustrações pertinentes ao projeto editorial. Mas seus “editores” utilizam imagens de sua infância e adolescência, inclusive na capa. Para ilustrar o que, afinal? Atribui-las a uma semiótica mal intencionada, no sentido da insinuação de uma (absurda) componente ingênua ou naive em sua obra, seria superestimar a argúcia deles. Se, pelo lado da boa fé, quisessem aludir à sua precocidade, eu digo que se faria necessário um resumo biográfico ou um texto que informasse o leitor a respeito. Mas é que esse pessoal, quando se depara com material muito acima da média intelectual à que frequenta, costuma apelar para o “diferente”, o “inusitado”, o “engraçado-engraçadinho”, e acaba se estrepando em equívocos ou disparates delirantes. Não são editores, nem fazem livros para leitores. Tem acontecido muito: livros feitos por pessoas que não leem para pessoas que não leem. Para ambos, nada tem importância.

Contudo, o mais inusitado é o tratamento exegético da sua obra.

Cara!!! Não é que aconteceu agora justamente o que eu queria evitar quando, em 2004, dei aquele Alô Alô pra você! No início, até que começou a dar certo para nós e o nosso projeto. Depois do Alô Alô, saiu Tudo é Brasil e, na sequência, editores italianos, que fazem livros de pessoas que leem para pessoas que leem, o publicaram na bela língua deles, em impecável trabalho editorial. As três edições bateram bem onde chegaram (o leitor pode conhecê-las em http://marioobras.blogspot.com/2009/03/2004-critica.html).

A jogada era levar seus escritos, que, como seus filmes, são bandeiras da nossa geração, às novas e futuras gerações. Você e sua obra emulados por nomes chegados ao espírito culto e irreverente que caracteriza a sua/nossa inquietação, uma vez que ainda temos alguns – e dos bons! - que permanecem na batalha, empurrando o carro pesado da revolução.

Mas eis que você aparece escoltado (e ocultado, como veremos) por nomes de que eu nunca tinha ouvido falar; certos doutores e outros acadêmicos que devem ser bem conhecidos lá na Universidade de Santa Catarina, a qual chancela (e contamina) a edição junto ao logotipo do Banco Itaú. No que toca às chamadas "Ciências Humanas", as universidades são todas iguais: são entidades embalsamadoras do pensamento e do espírito (apesar de uns poucos resistentes que nelas insistem em permanecer). E no que toca aos bancos, nem é preciso dizer; são clones que se multiplicam com diferentes logotipos. O Itaú acaba de conquistar o título de maior sanguessuga da miséria do nosso povo ao anunciar um lucro pornográfico de R$ 13 bilhões em apenas um ano. Ou seja, a meia dúzia de acionistas daquela "produtiva" instituição abocanhou 1 bi (cerca de cem loterias) por mês, e ainda teve direito a 13º!!!

Você também contribuiu para esse lucro com o seu grão de areia, camarada. A merreca (para eles) gasta a título de "patrocínio" foi 100% abatida do imposto de renda daqueles safados, via Lei de Incentivo. Quer dizer: nós, o povo brasileiro, pagamos a conta. E não economizaram: dois livros na “caixinha”, dois coordenadores, dois prefaciadores, dois orelhistas, etc e tal. Com certeza, com cachês bem pagos, claro, mas quem garante é você! Ao menos no meu caso, as 70 pratas que gastei na compra da "caixinha" foi porque eu sabia quem estava nela, independente do que viesse junto (Helena não fez a gentileza de enviar-me um exemplar, nem a moça do Itaú, a quem, um tempo atrás e a pedido dela, enviei um exemplar de Tudo é Brasil).

Mas ainda não chegamos no pior, que é o embalsamamento (que palavra desgraçada) da sua literatura pelos magníficos doutores professores da UFSC. Os curriculum vitae não foram publicados talvez por serem de notórias autoridades na matéria, e é a minha ignorância que não alcança essas altas esferas do conhecimento.

Ludovico Silva, um gênio venezuelano nosso contemporâneo que você teria adorado conhecer (ele fez a última viagem pouco antes de você), e que só agora a Revolução Bolivariana da Venezuela vem revelando, diz o seguinte a respeito desse processo:

"Todos aqueles que, por não dar as costas à História e têm procurado dotar suas teorias de um sentido transformador e não indiferente à ação sobre o mundo empírico, ou bem tiveram de se retirar da filosofia acadêmica, ou bem são considerados por esta como "não filosóficos", o que, em outras palavras quer dizer simplesmente "bastardos". Um bastardo dessa natureza foi Karl Marx, cujo mundo teórico sempre foi intragável para os estômagos acadêmicos, ainda que, em larga escala, esses estômagos têm demonstrado uma resistência capaz de digerir, academizar e dissecar a obra de Marx, a ponto de torná-la irreconhecível. Tão irreconhecível que o Marx que circula como mercadoria filosófica nas universidades passou a ser um mero "interpretador" o qual, por sua vez, deve ser também interpretado, pelo que se foi perdendo todo e qualquer vestígio do sentido último de suas teorias, que era o de transformar e mudar o mundo."

Esta foi uma das razões que levaram boa parte da nossa geração a cair fora das universidades e da hipocrisia academicista. Se nesse trecho de Ludovico substituirmos o nome de Marx pelo seu, Rogério, teremos o que estão buscando fazer com a sua obra a partir do Edifício Rogério, "edifício" que é só de fachada, como o do bolo de aniversário da foto de capa. Seus exegetas se comportam como os de Marx, que Ludovico denuncia. Fazem uma leitura "dinâmica" da sua obra, e engessam-na em “análises” do tipo formal-com-formol. Escrevem como se dissessem aos alunos: - o autor tem lá sua importância, mas vocês não precisam se dar ao trabalho de ler os calhamaços que escreveu, pois o que interessa sobre ele e sua obra está na página tal da minha apostila.

Notável é o grilo desses caras com palavras que frequentam com assiduidade os seus/nossos textos, tais como gênio, revolucão, irreverência, liberdade, resistência, inteligência, imperialismo, colonialismo, e não duvido que se contarmos todas vamos a mais de um terço do léxico. Discurso revolucionário eles chamam de “dicção inflamada”; irreverência é “sintaxe inusual”; liberdade de linguagem é “colagem de signos aparentemente díspares”; e por aí vai... É um preconceito que resulta numa limitação fatal à livre expressão de qualquer idéia. O estilo é coisa proibida; ao ler orelhas e prefácios, a impressão é a de que dizem a mesma coisa pelo mesmo autor, com ligeiras alterações de forma, e, para o seu caso, com permissivas “licenças poéticas” e arroubos “criativos” que só chegam ao lugar comum e à banalidade (na verdade, tentam mostrar que são mais criativos que você).

Em essência, o seu exegeta é um só, como sugere Ludovico: o estômago acadêmico. Uma espécie de norma ISO de redação exegética que só pode dar em mediocridade.

Assim, a presença de Noel Rosa na sua obra não se dá porque você o considera "o mais revolucionário dos cantadores da tristeza da raça negra", como escreve em uma de suas colunas da Folha, que é publicada no próprio livro 2, na página 53, mas é "por (Noel) introduzir uma nova poesia urbana na música popular brasileira, com amor, humor e dor", como pontifica vazio e piegas o seu exegeta, tentando ser poético.

Também João Gilberto é frequente em sua obra não porque você o vê como "único solitário insubmisso cantor brasileiro a não alienar ao povo desse país-continente a possibilidade daquela inteligência e concentração necessárias a uma maioridade cultural" (pag. 53, livro 2), pois o professor nos ensina que é "por (JG) criar uma batida inaudita e uma bossa nova de cantar, na música popular brasileira internacional" (???).

São inúmeras as passagens em que você expressou a sua admiração pelas referências fundamentais da sua obra: Welles, Oswald, Godard, Noel, etc. Nenhuma é citada. Aliás, sempre quando o citam, não o fazem literalmente. Eles “explicam” você. Ao invés de abrir aspas e lançar suas linhas geniais sobre o assunto, como várias vezes fez Gilberto no prefácio que mencionei, ao mesmo tempo apoiando suas idéias e estimulando o leitor a embarcar na sua obra, tentam uma “simplificação didática”, numa postura distante e blasé, como a de quem diz: - é o autor que pensa assim, eu não tenho nada com isso, sou apenas um observador.

Um outro exemplo é o de Hendrix. Você, em nosso Alô Alô (pag. 95): "Dzin, jin, gênio, nuntius (em latim, enviado) ou como quiser nomear aquilo que é inominável (...) aquele ser movido por uma graça que faz a história vibrar e ameaça o transcorrer acadêmico das coisas". Como esse texto, apesar de ter sido publicado na Folha, não está na “caixinha”, não sei se os caras o leram. Mesmo assim, a forte presença de Hendrix na sua obra precisava ser “explicada” e ajustada ao conformismo ideológico acadêmico; o que resultou na seguinte banalidade professoral: “por (JH) transformar a microfonia com música, numa orquestração radical de sons e cores na guitarra elétrica".

E, "durma-se com um barulho desses"! Os “corretivos” acadêmicos-mumificadores de seus originais conceitos não acadêmicos dos três exemplos acima estão na página 13 do livro 2, num só parágrafo! O bastante para que um jovem leitor inteligente abandone o livro, já bocejando e pensando que o tal "Edifício Rogério" não está com nada. Nossas edições "bastardas" sequer são mencionadas, nem como tais; e até a italiana - de "primeiro mundo", como eles dizem - é omitida; elas simplesmente não existem.

A indiferença com que "patrocinadores", coordenadores e exegetas o tratam e à sua obra é revoltante. Você e sua obra são para eles como cadáveres de indigentes em aulas de anatomia. O que interessa não são os textos nem você (cadáveres), mas as pontificações dos doutores ao dissecá-los. Assim como as fotos estão lá para ilustrarem coisa nenhuma, seus textos estão lá para não serem lidos. Fotos e textos são usados, disfarçadamente, como "documentos" da dissecação, mas nem a isto alcançam. Acabam como “anexos” meramente formais, sem qualquer vínculo ou compromisso com uma idéia ou projeto editorial consistente. Não há sequer a informação sobre o universo pesquisado e dos critérios de escolha e seleção de textos, fotos e iconografias, se é que houve algum. Para mim, o único critério visível é o “por sorteio”. É que o outro olho (interesse principal) estava fixado nos cachês, nos badalos da imprensa e nos convescotes burgueses de lançamento, já que o sucesso destes, mais uma vez, quem garante é você (e nós, pagando a conta).

Esse “tratamento” editorial não atinge macacos velhos como eu e os da nossa geração, mas pode causar sérias perdas de jovens leitores que, na desorientação desinformativa em que vivemos, necessitam alguma informação prévia sobre a leitura que devem encarar para sair da cegueira em que o Sistema (leia-se Banco Itaú and Brothers) pretende submetê-los a fim de neutralizar neles todo e qualquer potencial de rebeldia.

É um método de ocultação muito usado atualmente: cobrir o "cadáver" de exegeses elogiosas misturadas a badalos socialaites e dotá-lo de um caixão (ou "caixinha") feito sob medida para impedir que dele possa escapar qualquer luz de imortalidade. Pois, se não é isto, a ocultação do gênio revolucionário em camuflagem de rigor acadêmico com chancela oficializante de uma UF da vida não teria Banco Itaú patrocinando obras de Rogério Sganzerla. Os pilantras sabem onde põem o bico.

Podemos compreender que Helena e as “meninas” precisem da grana, mas, qualquer tenha sido ela, garanto que melhor negócio seria dar continuidade ao nosso projeto pela via alternativa, independente, pela nossa via – a sua via, Rogério! Temos condições de fazer um trabalho de fato importante e consequente. Eu disse à Helena que dinheiro seria fator secundário. Mas essa obscura publicação - ela, sim, bastarda, feita para fracassar e para que o fracasso seja atribuído a você - já ameaça queimar o seu nome e o ineditismo de sua obra literária, que muito favoreceriam o nosso projeto.

Não podemos permitir que obras como as suas sejam diluidas e ocultadas dessa forma; elas são preciosidades que muito contribuem para nos tirar da big bosta brazil em que estamos metidos. E digo mais: é pelas luzes emitidas por obras como as suas - e as dos que o antecederam e o sucederem em genialidade e consciência revolucionárias - que a humanidade haverá de encontrar o caminho para superar sua própria estupidez.

Contudo, ainda penso que o nosso projeto não foi de todo comprometido, companheiro, mas foi seriamente abalado. É difícil, Rogério! Mesmo assim,

Venceremos!

Mario Drumond
BH 24/3/2011

PS – Peço outras desculpas pela crueza e extensão da carta, mas julguei necessário desopilar-nos. Considero o livro uma das maiores conquistas da Humanidade. O melhor da minha vida devo aos livros, com os quais sempre me vi profundamente envolvido, como leitor, editor e autor. O que vou fazer agora é levar meu exemplar ao encardenador e pedir-lhe que liberte suas páginas de todas as que não são suas e as reencaderne juntas num só volume sob o título Rogério Sganzerla – Jornalismo – Textos sorteados, para que eu possa desfrutá-los com o prazer e a atenção que merecem.