quarta-feira, 1 de abril de 2009

Gazeta em forma de e-meio 82

A política dos pulmões

É lisonjeira para nós, fumantes, a preocupação dos governantes e autoridades do mundo capitalista com a limpeza dos nossos pulmões e com a nossa saúde de uma maneira geral. Já estamos comemorando talvez duas décadas completas dessa incessante e persistente demonstração de apreço à nossa qualidade de vida e bem estar, através de maciças campanhas de propaganda em todos os meios de comunicação da mídia hegemônica, em paralelo ao farto noticiário “informativo” e “de opinião” que neles se publicam, além dos insistentes pronunciamentos das autoridades competentes sobre os males do tabaco e as terríveis conseqüências que produzem nos que se viciam ou se habituam em seu consumo nefasto.

Anteontem mesmo, como se para seguir a moda em curso nos países de “primeiro mundo”, o nosso ministro da Fazenda concedeu um polpudo “incentivo” às fábricas de automóveis e às empresas de construção civil da magnitude de 1,5 bi, sob a forma de renúncia fiscal, em troca de uma mísera estabilidade laboral de três meses para os empregados dessas empresas. E, para que essa conta não caísse em ônus do erário e nem na desgraça da nação, ele a enviou aos infelizes tabagistas na forma de um aumento de impostos, e justificou tudo alegre e espirituosamente: -“Com certeza, vai doer no bolso dos fumantes, mas é melhor que doa nos seus bolsos do que nos seus pulmões”.

Este gazeteiro não logrou a inteligência do raciocínio ministerial. Ora, se vai doer no bolso do fumante, haverá de doer também nos seus pulmões, não? Pois será preciso comprar o famigerado produto para que ele doa no bolso. Portanto, ao consumi-lo... ou será que o ministro estará sugerindo que este novo acréscimo fiscal saneará os males imputados ao denegrido capeta, a maldita ovelha negra da gloriosa indústria capitalista?

Mas há incógnitas mais relevantes e misteriosas no raciocínio ministerial. Em primeiro lugar, surpreende-nos que ainda haja no planeta fumantes suficientes para cobrir tamanha mordida orçamentária depois de tanta e tão maciça propaganda contrária, ao longo de tanto tempo. E propaganda cara, caríssima, faustosa até, praticamente toda ela paga pelo mesmo e onerado erário. Não seria o caso de revê-la, ver se está mesmo dando certo? Nas suas modestas condições de pesquisador de opinião, este gazeteiro realizou uma única entrevista com a dona Dilma, veterana caixa da mercearia que fica perto de seu mocó e que o serve de cerveja gelada, cigarros e outros vícios menores.

Segundo ela, os consumidores de tabaco são, em sua quase totalidade, trabalhadores braçais, em particular os biscateiros do bairro e os empregados das obras em curso nas cercanias, que preferem as marcas mais baratas ou o velho cigarro picado. Os que levam as marcas mais caras, às vezes, aos pacotes, são os aposentados ou, entre os mais assíduos, senhores como este gazeteiro e um outro que ela só sabe dizer que “escreve num jornal aqui de BH”. Reivindiquei para nós, os dois últimos, o título honroso de “trabalhadores intelectuais” e ela retrucou dizendo que “essa é uma desculpa velha”. Fim da pesquisa.

Mas não acabam aí as nossas dificuldades de compreensão com a preocupação pulmonar ministerial. Se bem entendi, estaríamos onerando os fumantes para aliviar os fabricantes e os compradores de automóveis? Ora, o leitor conhece bem o veneno mortal para os pulmões humanos e os de toda a natureza planetária, este que sai dos escapamentos dos automóveis, e nem pensa em olfatá-lo (desculpem-me o palavrão) de perto, a não ser que queira o suicídio em menos de dez minutos, com o carro ligado numa garagem fechada. Como meio de acabar com a vida, por acidente, por suicídio ou por ser causa de doenças graves (as pulmonares incluidíssimas), tal veneno já terá causado mais mortes do que as atribuídas aos mais horripilantes genocídios perpetrados contra a humanidade. Já os males do nosso nativo e ancestral tabaco - que o nosso avô Cunhambebe, tal como seus ancestrais ao longo de milênios, fumou desbragadamente até os 140 anos de idade, quando faleceu de tanto fornicar durante um dabacuri – estão tão bem comprovados “cientificamente” quanto o número de “seis milhões” atribuído ao total das vítimas do “holocausto” mais badalado e menos verdadeiro de que se tem notícia.

Então, ficamos assim, como disse Eduardo Galeano: “As fábricas e os automóveis podem fumar à vontade; nós, não!” E, se o fizermos, temos de pagar pelos prejuízos que as fábricas e os automóveis sofrem nas crises ou causam à sociedade. É isso, ministro?! Ou não é?! Explique-se.

Mas ainda não chegamos ao mais intrigante de tudo em relação a essas medidas anti crises pulmonares e bursáteis (sem troca d’alhos): nínguém fala em ferrovias, em transportes urbanos de massa (metrô e anexos modais), em vias fluviais, em navegação de cabotagem, em alternativas ao modus vivendi consumista-capitalista, do uso das energias limpas e renováveis; enfim, ninguém fala de Marcello Guimarães (se o leitor não sabe quem é esse sujeito, vá a este endereço e terá alguma informação: http://marioobras.blogspot.com).

E não acabou. Temos a outra grande parte incentivada pelos nossos poderosos pulmões de fumantes: as empresas de construção civil. Estas, porém, só se fizerem parte do big plano de um milhão de casas populares que o presidente bombasticamente vem anunciando. Claro, todas elas farão parte do big plano, por que não? Além de abiscoitar um belo incentivo, serão afortunadas candidatas a uma respeitável, ainda que somente prometida, bolada erária pública. Mesmo se esta não vier, o que terão a perder?

Surge aí, outra vez, a nossa crônica dificuldade de compreensão: mesmo sabendo que o deficit habitacional brasileiro é de 35 milhões de residências, onde será colocado, geograficamente falando, esse um milhão que haverá de diminuí-lo - benfazejamente, por certo -, para 34 milhões? Os futuros moradores devem começar a rezar para que sejam bem próximas dos centros urbanos as suas futuras residências; os preços de passagens dos ônibus suburbanos são impraticáveis. Hoje, uma família de bairro um pouco distante do centro urbano - nem precisa ser um bairro “de periferia” - já não pode desfrutar, por exemplo, de um domingo no parque. Dependendo do local onde mora essa família, talvez fique mais barato tomar um táxi do que ir ao parque de ônibus. O grande busilis aí é que tal família já não pode tomar um táxi há mais de três gerações.

Camarada presidente Lula! Pense bem, ou, se não quiser se dar a esse trabalho, consulte o seu colega presidente Chávez, da Venezuela. As nossas siderúrgicas estão paralisadas, as nossas indústrias demitindo e quebrando, o nosso comércio minguando. De que adiantam os três meses de salários para esses empregados? Só vão lhes aumentar o tempo de angústia pré-desemprego que, dizem, é pior do que a TPM em mulheres (mais conhecida como paquete).

Na Venezuela, tudo está a todo vapor. Em colaboração com a China, a França e a Itália, eles estão construindo treze mil quilômetros de ferrovias (28% já prontas, em operação) pelo país todo e estão com planos de ficar fazendo mais trilhos ainda, até a última vilazinha dos quintos dos Andes, durante ao menos vinte anos. E são trens modernos e velozes, que viajam entre 110 e 280 km/h. Todas as grandes cidades do país já estão providas de metrôs e complementos modais de transporte de massas (ônibus elétricos, teleféricos, bondes, barcas, etc). As siderúrgicas e as indústrias de lá trabalham 24 horas por dia, o desemprego está caindo para zero; haja gente para produzir e colocar tanto trilho, tanto dormente de concreto, construir obras civis, túneis, pontes, estações de passageiros, depósitos de carga e o escambau de infra-estruturas mil.

E tudo o mais se movimenta em torno disso, principalmente a produção agropecuária, a alimentação e o comércio, que lá também estão a toda, porque, aí sim, vale o plano de fazer casario nos dois lados desses trilhos todos, trazendo consigo gente, comércio, parques, escolas, hospitais, teatros, cinemas e etc, e, o mais importante, esvaziando os centros urbanos, num processo de reversão social revolucionária que, no futuro, poderá ser batizado de “êxodo urbano”. E não param aí: o rio Orenoco e seus afluentes, que formam uma bacia hidrográfica que atravessa o país de ponta a ponta, à maneira de um espinha dorsal, já está sendo trabalhado e dragado para ser quase todo navegável, seja para o transporte de carga, seja para o de passageiros. Assim também a navegação costeira, de cabotagem. A pequena propriedade vai, desta forma, sendo viabilizada, pois só latifundiários podem ter terras nos fins de mundo, evidentemente, com aeroportos particulares para seus aviões e helicópteros, bem como longas e inviáveis rodovias de asfalto ou de terra, sempre feitas com dinheiro público, só para o trânsito fugaz e improdutivo de suas limusines, vans e off-roads.

Faça como o presidente Chávez, camarada presidente Lula, e diga a seus ministros para não se preocuparem com os pulmões dos fumantes, mas, sim, com o fim da indústria do automóvel e do consumismo capitalista que, graças a Deus, já está à vista e haverá de pôr a salvo os pulmões estratégicos da natureza, além de permitir, enfim, o bem estar e a saúde da humanidade, dos animais, dos vegetais, dos rios, dos ares, das águas e oceanos.

Por que, se não, nós, fumantes, vamos ter de dizer a seus ministros pulmonarmente preocupadíssimos com o nosso bem estar e a nossa saúde (e que não estão nem aí para os nossos bolsos), aquilo que o nosso avô Cunhambebe costumava dizer aos que vinham aporrinhá-lo, não se sabe se por fornicar ou fumar demais:

- “Jaurá ichê!” (“Não amolem; é muito bom!”)