quinta-feira, 21 de maio de 2009

Gazeta em forma de e-meio 89

O papel da arte

Não são gratuitas nem meras coincidências as breves citações dos nomes de Lenin e de Trotski no texto de Higinio Polo a que nos referimos na última Gazeta. Foram eles raros, senão únicos, entre os mais célebres líderes revolucionários do início do século 20 que entenderam o papel ponta-de-lança da arte no processo libertário dos povos. E, ao contrário das castas burguesas - que sempre se julgam cultas e tacham de extravagâncias sem sentido ou de loucuras inconsequentes os experimentos e a ousadia dos artistas de vanguarda -, nunca duvidaram da aderência e da compreensão popular às manifestações inovadoras dos gênios inquietos que se abrigam na alma dos artistas.

A Rússia de 1917 demonstrou o poder de fogo das vanguardas na comunicação com as massas. Os verdadeiros artistas são aliados das causas libertárias dos povos, e, se lhes abrirem os espaços, ninguém melhor que eles para apontar às massas a direção das conquistas revolucionárias. Foi o que fizeram Lenin e Trotski no comando da Revolução Russa: abriram as portas para que a genialidade coeva se manifestasse com o máximo de liberdade. Enquanto Eisenstein construía o ministério do Cinema e fazia Outubro, um filme que até hoje pode ser considerado uma cinematografia de vanguarda, Malevich e Kandinsky pintavam e decoravam estações ferroviárias, praças e edifícios públicos, Maiakovski viajava pelo país declamando poemas a vastas platéias populares e, com Rodchenko, fazia publicações patrióticas para a consciência das massas, Isadora Duncan criava escolas de dança livre para as crianças do povo, Stravinsky, Shostakovitch e Bartok regiam uma nova música em praças públicas, Vertov fundava o cinema documentário, Stanislavski transformava o teatro, enfim, uma fantástica explosão de músicos, bailarinos, artistas plásticos, poetas, escritores, dramaturgos, atores, cineastas, jornalistas, filósofos, ideólogos, que, ao lado dos políticos, militantes e militares revolucionários provocavam as massas para que elas mesmas fizessem a sua revolução. E a resposta destas não se fez esperar. Em menos de cinco anos consolidou-se surpreendentemente uma revolução que mais parecia um arroubo utópico em uma nação subdesenvolvida, atrasada, quase feudal, com uma população de 98% de analfabetos e que sequer possuía aquilo se pudesse chamar de classe operária.

No entanto, as forças reacionárias infiltradas naquele mesmo processo instilaram o veneno dos sofismas, da mentira, da fraude, e, com a morte de Lenin, conseguiram expulsar a Trotski e implantar o stalinismo, que é a própria negação da arte, e que sabemos bem no que deu. Na verdade, a verdadeira Revolução Russa durou apenas o intervalo de tempo compreendido entre a chegada de Lenin a Moscou, em 1917, e o tiro suicida de Maiakovski, em 1930. Pouco antes, Malevich era acusado de “subjetivismo” e passou a ser perseguido pela caretice que já se impunha na Rússia soviética. Em 1932, a música de Shostakovitch, um dos gênios revelados pela revolução, era censurada pelo stalinismo usurpador. E isto foi só o começo.

Mas aquela explosão não fora exclusiva da Revolução Russa. Nela, a arte teve o espaço de poder para se manifestar e tomar contato com o povo. Porém, em todo o mundo a inquietação das vanguardas artísticas já vinha se manifestando desde a primeira alvorada do século. Se por um lado, até chegaram a atrair alguma atenção interessada das massas, por outro, despertaram todos os alertas da reação burguesa. Com o susto provocado pelo sucesso de Lenin, as oligarquias ocidentais trataram de repensar suas estratégias para que o mesmo não ocorresse por aqui. E não eram tão burros como os stalinistas. Rachel de Queiróz costumava dizer: “os comunistas (leia-se stalinistas) são muito burros!” De fato, a nossa primeira escritora acadêmica estava cheia de razão.

Se Trotski tivesse permanecido um dia mais em Nova York é possível que visitasse a exposição dos artistas independentes e conhecesse em primeira mão a provocação de Duchamp e o seu urinol. E saberia interpretá-la muito para além de uma manifestação meramente iconoclasta; Trotski tinha cabeça mais que suficiente para perceber, no ato, o gesto de dessacralização ou desaburguesamento da arte e, além do mais, a contestação do objeto artístico enquanto mercadoria do comércio burguês de futilidades com status e expertise acadêmicos. Foi, sem dúvida, um gesto por si só revolucionário, com ou sem o engajamento do artista em uma ou outra corrente ideológica que se apresentasse como revolucionária; um gesto que poderia despertar o interesse e a consciência das massas para o debate sobre a criação artística, coisa que não passaria desapercebido a Trotski como não lhe passaram as manifestações semelhantes que ocorreram na Rússia soviética que ele propôs, ao lado de Lenin, erigir. A colaboração de Trotski que se deu logo a seguir com as vanguardas mexicanas, além dos escritos que deixou, validam essa tese que, aliás, Polo sugere com sutileza em seu artigo.

Porém, apesar de não ter sido este o objetivo principal do artigo dele, considero a maior virtude daquele seu escrito a restauração do frescor revolucionário do movimento dadaísta – independente de que seus protagonistas se alinhassem a correntes políticas da época, muitas das quais, por sinal, se não foram completamente derrotadas, acabaram por se revelar no oposto do que preconizavam. O artigo soma também, a essa questão, a denúncia de que a burguesia capitalista, com a cumplicidade de uma intelectualidade lacaia, tenta absorver aquele movimento de pura arte e da mais autêntica rebeldia criativa como mercadoria de luxo e colocá-lo na mesma prateleira mofada de seus epígonos pretéritos e atuais cujas obras não são mais do que, como bem definiu Polo, “soberba estupidez”. Evidencia assim a estratégia desses interesses oligárquicos e mercantilistas em aguar, melar, diluir todo movimento de real expressão artística, seja histórico ou contemporâneo, mas sempre e intrinsecamente revolucionário, e fazer com o que o papel da arte nos contextos sociais, políticos e históricos se reduza a inconsequentes bufonarias assinadas por débeis mentais ou no anonimato disfarçado de grupos culturais para depois vendê-las ao público e às massas, pelos canais da mídia hegemônica, como se fossem obras primas. Vivemos hoje os estertores dessa triste decadência capitalista e da fraude cultural elitista levada a cabo ao longo de quase todo o século passado no empenho de mantê-la a todo custo, a cada década com maior grau de exacerbação neurótica que, de uns anos para cá, toca os limites da estupidificação absoluta e da dissociação psicótica da realidade.

Mas a arte ao longo da história vem registrando tempos de obscurantismo iguais ou piores no passado e a todos não somente sobrevive em sua eternidade como tem sido o bálsamo dos que resistiram e a essência das bases morais, políticas e estéticas que são as que sempre ofereceram à Humanidade os caminhos da liberdade. Se seguimos ou não por tais caminhos é uma questão que vale outra Gazeta.