quarta-feira, 27 de maio de 2009

Gazeta em forma de e-meio 90

O Ateneu de Caracas

Caladinha, a mídia hegemônica mundial engoliu o enorme e mais recente sapo chavista na Venezuela: a não renovação do comodato do Ateneo de Caracas à fundação privada que o ocupava há 78 anos. O que é o Ateneu de Caracas? Consiste no principal, maior e mais sofisiticado espaço cultural daquele país, fundamentalmente dedicado à arte de vanguarda, em nível internacional. Algo do tipo Guggenheim, de Nova York, o Tate, de Londres e o Beaubourg, de Paris. Mais para Guggenheim, claro, pois se havia, desde a fundação, nas mãos das elites burguesas nacionais e estrangeiras, e se posicionava em semelhante prática pseudo benemérita de oligarquias que, não por motivos meramente elitistas ou supérfluos, se arrogam como tutoras da produção artística de vanguarda em todo o mundo. A diferença é que as oligarquias latino-americanas, quando se pretendem beneméritas, o fazem de maneira particular: no que diz respeito às despesas, elas preferem se valer dos cofres públicos e não dos seus próprios.

Mas a reação interna, se não foi tão escandalosa quanto à não renovação da concessão do canal televisivo RCTV, em 2007 (que hoje completa exatos dois anos), igualou-se em poderio e em histeria percutida pela mídia hegemônica nacional, e chegou a ser várias vezes comparada em importância, por ambos os lados ideologicamente antagônicos.

A ousadia revolucionária foi encarada como a própria “invasão dos bárbaros”. A oligarquia, ao perder a força de uma canal de TV aberta, perde apenas um lacaio, ainda que um importante lacaio, mas sempre um lacaio. Mas, no caso do Ateneu, ela sentia-se atingida na medula. Era como a ocupação do Golf Club ou do Country Club pelo “populacho”. Era despedir-se das noitadas bem regadas a champagne e cocaína no seleto club de arte, a 100 dólares o ingresso, por pessoa, desfrutando com exclusividade das pérolas das ousadias vanguardistas, desde aquelas de Duchamp (pronunciado com boca cheia, dii-chamm, incluindo o biquinho à francesa no dii) e os dadaístas “loucos” do início do século passado, até as atuais, das madames e peruas artistas que, entre umas e outras divagações, em que costumam citar dii-chamm com afetada frequência, exibem camisinhas e líquidos vaginais em “instalações” célebres pela estupidez. A madame Guggenheim criolla, presidenta em exercício da fundação despejada, chegou a se mostrar nas telas de seus lacaios, pela primeira vez, sacudindo colares, braceletes e brincos impressionantes e fazendo ameaças histéricas de “resistência cultural”. “Chavez que enviasse a Guarda Nacional para desalojá-la” de seu santuário, esbravejava às câmaras, rodeada de uma meia dúzia de atrizes “globais” e outras madames do high society que ela então chamava de “companheiras”.

O que o gazeteiro pensava escrever a respeito, nessa sequência de textos aparentemente desconexos das últimas Gazetas, fora, contudo, já escrito pelo professor de História da Arte da Universidade de los Andes, Venezuela, César Araujo Torres, num texto de observação que traduz, a seguir, de sua publicação no Aporrea.com, no dia 17 passado:

“As recentes medidas tomadas pelo governo nacional não deixam de causar histeria nas elites midiáticas e econômicas do país. A última, a que derramou e até rompeu o vaso foi a não renovação do contrato de comodato do Ateneu de Caracas, edifício que era ocupado pela Fundação Ateneu de Caracas, em pleno centro cultural da cidade. Fim do mundo. Saltaram, de imediato, a ‘Elite’ (favor pronunciar em francês: elít) do mundo “cultural” caraquenho (entenda-se venezuelano, já que é a elít). Pronunciamentos, ameaças, insultos, até uma declaração de ‘resistência cultural’ (como se fossem nossos irmãos afrodescendentes ou dos povos originários). Porém, mais além dos risos que podem nos causar essas conhecidas gritarias e dos banais ataques midiáticos, é válido analisar um pouco tais posições e suas causas estruturais.

“Em primeiro lugar, é evidente – ao fim e ao cabo, quem são? – que a primeira motivação dos protestos é econômica. (...) Sem embargo, nossa reflexão principal não se centra no fato lucrativo, por demais evidente, senão na segunda razão que motiva o estardalhaço, isto é, o golpe na cultura hegemônica.

"Temos nos referido em outros escritos à dicotomia entre o conceito de cultura como estratégia de dominação, de subjugação dos povos, e a cultura como elemento transformador e, desta forma, liberador da sociedade. Vale recordar que no sistema capitalista contemporâneo a cultura cumpre um papel fundamental para além da mera arrecadação de lucros. A cultura no sistema dominante serve por um lado para prostrar as sociedades à força de espetáculos, modas e futilidades, saturando os povos de uma cultura light, cheia de nada e especialmente alheia a qualquer carga reflexiva, de qualquer sombra de consciência crítica. Se sustenta em entreter, para assim prevenir a tomada de consciência e, de algum modo, ‘drenar’ a pressão social gerada pelas desigualdades históricas. Chega inclusive à eficiente tática de aliviar os conteúdos reflexivos de possíveis mensagens, gerando produtos para um público ‘alternativo’, ao qual faz crer que pensa, mas, na realidade só preenche de mais conformismo as suas mentes (exemplo: as modas ‘rebeldes’ que se disfarçam de ‘esquerdosas’).

“Em contraposição, se encontra a cultura como elemento transformador, libertário, em que igualmente se pode rir ou chorar, porém, partindo de uma realidade concreta, resgatando elementos com que nos identificamos, retomando significados fundamentais das expressões culturais, respeitando e retomando os elementos ancestrais e, sobretudo, gerando consciência reflexiva para transformar a realidade. Vale dizer, uma cultura que não implica na surrada perspectiva reducionista em que é costume dividir as expressões culturais; por um lado a suposta ‘alta’ cultura e, por outro, as chamadas expressões ‘populares’. Pelo contrário, a questão não está no que se faz, senão em como e para que se faz. Não são a mesma coisa o rock comercial e o rock que reivindica toda a sua carga subversiva, nem tampouco a visão ligeira, ‘turística’, que o capitalismo costuma dar às produções das culturas aborígenes e a profunda sabedoria ancestral intrínseca a cada objeto produzido pelos povos originários.

"Por isto, a posição desses tresnoitados ‘amos do Vale’ não é somente um desvairio. Essa atitude encerra a necessidade de prosseguir o jogo do sistema dominante. Por sobre as atividades do Ateneu, algumas inclusive válidas, está o domínio do que eles consideram ‘cultura’, entendida como um espaço para onde conflui o ‘seleto’ séquito de iluminados pelas essências da arte, os que, por uma 'divina' clarividência, podem escolher as 'centelhas da arte' para o povo inculto (um termo, ademais, absurdo). Tal posição revela o interesse de manter o modelo hegemônico, de sustentá-lo e justificá-lo por serem eles os que ‘sabem’ de cultura. Trata-se não só de manter espaços e lucros, mas dos componentes ideológicos que implicam os mesmos. O assunto de fundo é o conceito de cultura que manejam, desde a visão excludente, classista, abertamente racista, hegemônica e dentro do esquema de uma cultura dominadora, com o propósito de barrar e hermetizar todo o empenho do fato cultural enquanto gesto libertário. Sua soberba na ‘defesa’ desse ‘santuário’ demonstra a certeza, o convencimento de sentirem-se diferentes dos demais, de acreditarem-se no uso do direito de estirpe, de linhagem, que o sistema lhes outorga como a mais ‘seleta’. Daí se sentirem insultados quando alguém ousa ‘contaminar’ seus santuários com povo.

"A recente sequência de sucessos, culminando com o anúncio do presidente Chávez do uso do edifício como sede da Universidad de las Artes, oferece não só a possibilidade de abrir estes espaços ao povo, aos jovens criadores, à gente da rua, senão dar uma guinada em direção à perspectiva reflexiva, crítica, da cultura, necessária dentro dos espaços acadêmicos. A nova sede desta universidade, encravada no centro de espaços culturais importantes como o Museu de Belas Artes, o Teatro Teresa Carreño, a nova Galeria Nacional de Arte, o Museu de Arte Contemporânea, entre outros, está destinada a oxigenar este espaço com novos artistas e criadores.

"Pelo lado pessoal, sou assíduo frequentador da Plaza de los Museos. Como muitos, passo tardes inteiras ali, falando de arte e outros temas nos arredores do Ateneu, sentado à sombra das árvores. Ali se dava, como natural contradição, o fato de os transeuntes da área - quase sempre jovens artesãos, artistas e intelectuais de todo tipo, mas POBRES, que de vez em quando nos metíamos a fuçar livros incompráveis ou a ver algum filme em promoção -, ficassem até o entardecer assistindo ao desfile dos ‘amos do Vale’ para as funções ‘culturais’ da noite e outras atividades fora do nosso alcance.

"Agora, imagino esse edifício alimentado de estudantes, de vida, de cultura libertária, de povo, de comunidade. Imagino-o aberto a toda gente, vinculado às comunidades, aos artistas e aos que até hoje nunca tiveram chance de mostrar suas obras nesses espaços. Para que a Universidad de las Artes seja essa diferença deverá ser uma universidade transformadora, digna de uma revolução socialista. Deverá assumir-se como parte da discussão da arte e da cultura como fato social, imbricado em nosso dinâmico processo. Entender que a arte não é um processo isolado, que um produto da cultura procede de uma dinâmica histórica-social complexa, e saber-se consciente dela permitirá a seus estudantes criar com ainda maior consciência e, por fim, maior liberdade.

“A arte não é o espelho da realidade; é o instrumento que lhe dá forma. (Brecht)”

Comentário da Gazeta:

Chávez não é um careta stalinista, e a revolução bolivariana que lidera é, para a Humanidade, o portal da liberdade neste século 21. Este gazeteiro não tem notícia de um processo revolucionário mais sintonizado com as vanguardas criadoras contemporâneas, desde a Revolução Russa. Quem não estiver percebendo isto, permanece no século passado e corre o risco de lá ficar, mumificado.