quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Gazeta em forma de e-meio 93

A questão semântica

No brilhante estudo A sociologia dos países desenvolvidos, escrito no início da década de 1970, Álvaro Vieira Pinto disseca e desmonta a estratégia de dominação dos países “desenvolvidos” pelas artimanhas e corrupções dos termos da linguagem corrente, no sentido de retirar o impacto ou ocultar a realidade que vem implícita aos significados dos termos e palavras usados no cotidiano pelos povos e sociedades.

Assim, o próprio termo “países subdesenvolvidos”, que inclui em seu significado um antagonismo (real) com o termo “países desenvolvidos”, no sentido de espoliado versus espoliador ou oprimido versus opressor, vinha sendo, então, substituído por “países em desenvolvimento” ou “países em vias de desenvolvimento”, implantando aí a idéia de uma inexistente e irreal coincidência de paradigmas entre nações antagônicas, ou seja, a idéia de que as “subdesenvolvidas” possam vir a ser “desenvolvidas”, coisa que já se sabe impossível a partir da estratégia mesma de dominação imperialista que procura impor artificialmente a ardilosa “evolução” semântica.

Vieira Pinto desvenda incontáveis ardis do arsenal linguístico que é permanentemente operado por sociólogos a soldo, ou sociologetas, como ele os define, que formam, a serviço dos senhores imperiais, o batalhão de proa da luta dialética e linguística que historicamente mantêm com os escravos e as colônias, no sentido de retardar ao máximo o que já sabem ser o inevitável, isto é, a libertação definitiva destes últimos. Ele estuda os conceitos engendrados nesses laboratórios incrustados em universidades públicas e privadas da matriz e das colônias, onde se formam as elites do pensamento imperialista e os lacaios de que necessitam, os quais vão sendo aplicados às análises sociais e econômicas que são difundidas como “científicas” e aceitas como válidas nos meios oficiais e pela mídia hegemônica. Conceitos de “bem” e de “valor”, de “consumo”, a sociologia de “grupos”, a “iniciativa privada”, os “índices” de grandeza e de crescimento, termos tais como PIB, renda per capita, e outros que frequentam as “teses” e escritos dos economeutas acadêmicos ou jornalísticos, são desmontados um a um no genial estudo que este mestre do pensamento revolucionário nos legou:

“O desenvolvimento é um fenômeno social global, de modo que índices artificialmente concebidos para dar posição privilegiada às potências imperiais nada representam a não ser isso mesmo, a confirmação da intervenção dos economistas do extrato celeste para produzirmos os sofismas econômicos em forma de complicados indicadores destinados a deixar sempre uma imagem radiosa das nações ricas exploradoras do trabalho das infortunadas. A renda per capita é uma pura manipulação aritmética, que só adquire sentido no contexto de uma economia capitalista; para cuja glória, aliás, foi imaginada.” Mais adiante, Vieira Pinto propõe o trabalho per capita como índice de real interesse econômico, em particular, para os países subdesenvolvidos.

Mais recentemente, é o uruguaio Eduardo Galeano, outro grande combatente nessa batalha das idéias, que vem tratando a questão semântica numa série de crônicas televisivas intituladas O mundo ao revés, que este gazeteiro tem visto publicadas na VTV venezuelana. Numa delas, subtitulada Assassinando as palavras, Galeano anota as deformações semânticas que vão sendo sub-repticiamente introduzidas pela mídia hegemônica: “Agora a traição se chama realismo, o oportunismo se chama pragmatismo, o imperialismo se chama globalização, e às vítimas do imperialismo chamam de países em vias de desenvolvimento. O capitalismo agora se chama economia de mercado; os trabalhadores já não mais são seres humanos, são recursos humanos; a tortura torna-se ora uma coerção ilegal ora um método de interrogatório nos limites da legalidade. Os dicionários também têm sido assassinados pelas organizações criminosas que governam o mundo nessa ditadura invisível onde banqueiros e militares são chamados de comunidade internacional; as palavras já não dizem o que dizem”.

Estamos hoje imersos nos estertores mais desesperados dessa deformação semântica manipuladora, em todos os contextos sociológicos possíveis.

No plano político, por exemplo, assistimos neste momento uma das mais histriônicas de suas manifestações, que é como a mídia hegemônica tem procurado “informar” o respeitável público sobre o caso de Honduras. O termo mais elementar que se conhece para definir o que ali ocorreu é golpe de Estado; mas os sociologetas, economeutas e foliculários encarregados da redação das matérias estão proibidos de usá-lo. E não se entendem: uns dizem que foi uma transição forçada, outros que foi uma sucessão atípica, outros que foi uma substituição provisória. Quanto ao ditador, palavra que define corretamente o usurpador do poder democrático mas que também está proibida de ser usada no caso, não sabem ao certo se se trata de um presidente interino, um presidente substituto, um presidente nomeado pelo Congresso ou um presidente temporário. Numa mesma página de jornal ou revista da mídia hegemônica é possível encontrarmos dois ou três desses novos termos ou até todos eles.

No plano militar, já estamos enfastiados, desde o 11 de setembro de 2001, com a substituição da palavra invasão por termos como guerra preventiva, luta contra o terrorismo, operação militar de precisão cirúrgica, entre outras “criações” sociologéticas contemporâneas.

Até a democracia, velha de guerra, vem sofrendo uma nova e recentíssima deformação semântica em seu significado elementar, que é o poder que emana do povo, ou do povo como fonte única e soberana do poder. Dona Hillary - ah, ah, ah, que hilária! (os norte-coreanos zombam dela dizendo que “ela mais parece uma aposentada fazendo compras no shopping”) -, disse outro dia que “as eleições não mais significam a garantia de democracia em seus resultados”. Neste sofisma, ela explica que a tal “comunidade internacional” e os “meios de comunicação” é que são os mais indicados para atestarem o caráter democrático dos governos, “pois os povos podem ser enganados por ditadores que eventualmente possuam facilidade de comunicação com as massas”.

Refere-se, evidentemente, ao ditador Hugo Chávez, este, sim, um verdadeiro ditador que vem enganando o povo da Venezuela em mais de 10 eleições sucessivas, todas com inquestionável isenção e testemunhadas por várias organizações internacionais de indiscutível imparcialidade. Assim, a guerra preventiva já está sendo articulada para devolver a democracia à Venezuela através da Colômbia, onde os EUA pretendem montar mais seis bases militares no próximo ano, as quais, além disso, vão combater uma outra guerra, a guerra contra o narcotráfico, também na Venezuela e alguns países “suspeitos” das vizinhanças como a Bolívia, o Equador e a Nicarágua.

Ocorre que nem a Venezuela e nem os países “suspeitos” já não produzem ou traficam narcóticos ilegais; atualmente o maior produtor e traficante mundial é justamente a Colômbia, seguido pelos EUA, que, por sua vez, é também, e de longe, o maior consumidor de drogas do mundo. Porém, a economia de mercado, em sua crise permanente, sobrevive agora, em modo de respiração artificial, do mercado de drogas ilegais. Eis porque é necessária a guerra preventiva contra Chávez, pois o governo dele acabou com o mercado de drogas no seu país. Além disso, o butim de guerra na Venezuela é altíssimo: uma das maiores reservas de petróleo do mundo. O leitor da Gazeta terá facilidade para entender tais coisas, mas, havemos de convir que são dignos de pena os pobres leitores e espectadores dos veículos de informação ou de comunicação da mídia hegemônica.

No entanto, Álvaro Vieira Pinto nos ensina que tais movimentações semânticas têm caráter meramente superficial por serem um “simples resultado reflexo de um processo dialético real muito mais profundo e complexo, o da comunicação entre o pensamento de dois indivíduos racionais”, no qual, para ele, “só existe um sujeito capaz de fixar a linguagem, que é, obrigatoriamente, o homem trabalhador”, numa lição importante que conclui o seu extenso e bem fundamentado trabalho, e que ele mesmo resume assim:

“O escravo é o ser sociológico lexicogênico. Compreende-se imediatamente a justeza do enunciado quando percebemos o fato evidente de caber ao escravo, isto é, às massas operárias, que pelo trabalho dão fundamento ao contínuo desenvolvimento da linguagem, plasmarem o tipo humano futuro, com todas as características originais, entre as quais sobressaem as novas modalidades expressivas. O senhor não possui essa qualidade, não pode incluir entre os seus títulos de nobreza o de representar o fator social lexicogênico, e isto pela elementar razão de não trabalhar.”

Deduz-se daí que o aparato bélico-linguístico que os senhores da guerra e do dinheiro tentam impor à Humanidade a ferro e fogo não é mais que a reação desesperada de quem já se percebe no limiar da derrota e da desaparição enquanto fator ou fenômeno social, e não têm outra saída senão se valer de todos os meios que possuem para frear as forças que os acossam e retardar o inevitável processo evolutivo-revolucionário da Humanidade. Para tanto, tentam validar a mentira descarada e o terror como instrumentos de intimidação, e se valem de todas as armas que detêm, entre elas a da manipulação semântica. É como disse Eduardo Galeano, em outro de seus programas televisivos:

“A tortura, que agora está sendo aceita e alardeada pelos meios de comunicação como instrumento eficaz no combate ao terrorismo, é, na verdade, um velho instrumento das elites para semear o terror na sociedade; uma tática repressiva para prevenir o delito da dignidade.”