terça-feira, 25 de agosto de 2009

Gazeta em forma de e-meio 96

Palavras sem obras são tiros sem bala
(Pde. Antonio Vieira, Sermão da Sexagésima)


Da incrível atualidade da obra de Padre Antonio Vieira

Estamos no ano da graça de 2009. Em um teatro abarrotado, diante de uma platéia atenta e concentrada, composta na sua maioria por jovens, um ator despojado de outros recursos que não o texto, a batina e parcos objetos litúrgicos magnetiza a audiência com as palavras de fogo saídas da pena magistral do Padre Antonio Vieira.

Esclareça-se que o Sermão da Sexagésima “cai” no próximo vestibular da UFMG, fator que, em parte, viabilizou a montagem e garantiu tão grande presença de público, segundo o próprio intérprete-diretor-adaptador-produtor-cenógrafo-figurinista-sonoplasta-contra-regra-realizador do espetáculo, o teatrólogo Rodrigo Leste.

Obra prima da Oratória, o célebre Sermão da Sexagésima ficou muito bem no palco. Foi escrito para ser pregado no púlpito da Capela Real em Lisboa pelo próprio autor. Ao ler Vieira, temos, pois, de nos contentar com um gozo incompleto, uma vez que são obras que foram escritas para serem ditas muito mais que para serem lidas. Muito diferente, é ouvir Vieira. O teatro, somente o bom teatro - e exclusivamente através de sua linguagem própria e única - é capaz de realizar o milagre de fazer reviver a peça de oratória enquanto acontecimento artístico em que a presença partícipe do espectador, como ouvinte, é condição fundamental para que se realize pleno.

Eis que, mais uma vez, a Gazeta, em sua precariedade de condições, dá mais este furo de reportagem. Traz uma notícia que, na verdade, são duas de igual importância: uma, que o dramaturgo Rodrigo Leste, em seu labor profissional e militante da literatura e do teatro brasileiros, realizou a façanha, e com méritos indiscutíveis; outra é que, com a sua montagem brilhante e a sua disposição de guerrilheiro cultural, lotou três sessões no Teatro do Imaculada (400 lugares), em BH, sábado e domingo passados, e desbundou um público jovem praticamente virgem de experiência com o teatro.

Este repórter entrevistou alguns dos pré vestibulandos na saída da sessão de domingo que confessaram, cada qual ao seu modo, como Natália, que vai “tentar Medicina”, que aquela experiência havia transcendido o interesse objetivo do vestibular e lograra atingir a sensibilidade deles para o teatro e para a literatura brasileira, em particular, a obra de Vieira, até então, para Natália, hermetizada num complexo jogo de palavras que só deixou de ser confuso a partir do momento em que ela pôde ouvi-las, ao vivo, na interpretação de Rodrigo Leste.

Seguiu-se à encenação um bate-papo com os professores Kaio Carmona e Sérgio Alcides, ambos de Literatura Brasileira, os quais, junto a este gazeteiro, foram convidados por Rodrigo para debater com a platéia e elucidar eventuais dúvidas dos vestibulandos. Mas pouco ou nada pudemos fazer nesse sentido; a platéia demonstrava-se muito satisfeita com o que acabara de vivenciar. Considero que o depoimento da estudante Natália, numa escala outra, é válido também para os que, como nós, vivemos e amamos o teatro desde criancinhas.

Confesso que foi ali, pela primeira vez ouvindo Vieira, que apreendi e desfrutei, na plenitude, a essência e o gozo emanados do seu gênio, inclusive a incrível atualidade de seus achados imortais, os quais magistralmente expressou, como ninguém. Com a força da dramaturgia e da dicção daquele texto que foi composto para ser dito, e dito como tal, com veia e verve, as palavras de Vieira nos penetram poderosas, e a magia do teatro se completou desde os primeiros instantes, logo ao abstrairmos a presença do intérprete e sentirmos a do personagem nele encarnado, como se ali estivesse, diante de nós! O leitor iria amar a experiência, não tenho a menor dúvida!

Infelizmente, Rodrigo informa-nos que o “ciclo Vieira” acabou ali. Por que? – é a pergunta imediata do jornalista. “Simplesmente, por não haver público” – respondeu o guerrilheiro – “nessas três sessões reuni todo o público possível de se trazer ao teatro para um espetáculo como este.”

Falou quem sabe dessa realidade. Há mais de trinta anos conheço Rodrigo Leste, incansável, na mesma luta, no começo em trupes, depois na solidão do artista que encara sem ilusões a adversidade do seu destino e consegue transformá-la em seu pão de cada dia; e vai em frente! Encontrou a brecha da necessidade juvenil e escolar do teatro didático e dentro dela soube introduzir, com exemplar humildade, suas qualidades de escritor e dramaturgo, viabilizando um profissionalismo de resistência pela batalha do ingresso barato e do interesse imediatista dos escolares, com o que mantém o seu trabalho portátil, pobre de recursos (como só o teatro pode ser) e rico de idéias. Idéias que, de uma forma ou de outra, se propagam com uma vingança que jamais haverá nos plantios transgênicos e sistêmicos, ricos de recursos e esterilizados de idéias, que se urdem no mandarinato cultural para serem o que Vieira chamou de “tiros sem bala”:

“Palavras sem obra são tiros sem bala; atroam, mas não ferem.(...) Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras.”

O trabalho solitário e heróico de Rodrigo, com quase nenhuma resposta divulgadora e difusora, em sua imerecida insignificância no que diz respeito à repercussão e ao público, ainda assim demonstra que a juventude precisa do teatro, quer o teatro e ama o teatro, porém, o teatro que vai ao coração e à inquietação dos jovens construtores de novos mundos; isto é, o verdadeiro teatro, não comercial, essencial.


Em tempo: na saída do espetáculo, a jovem platéia era assediada pela distribuição de panfletos de divulgação de uma comédia intitulada Perigosas Peruas, uma das “pérolas” do teatro produzido em Minas que se vangloria de levar multidões às salas através “da mais bem sucedida Campanha de Popularização do Teatro do Brasil”.