quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Gazeta em forma de e-meio 95

A misteriosa incógnita

Entre os maiores problemas na formação intelectual dos poucos de nós, brasileiros, que tivemos ou temos acesso a tal luxo, está o direcionamento ideológico e censor por parte dos que exercem poderes nos diversos meios de acesso ao conhecimento, dentro e fora da nacionalidade. Nem me refiro aos meios de comunicação ou aos currículos escolares e acadêmicos, que todos sabemos minados de manipulações, das mais sutis até as mais grosseiras, e de lacunas abissais. Se dependêssemos deles sequer poderíamos alegar que tivéssemos alguma formação intelectual.

Aqui denunciamos algo tão ou mais perverso, algo em que quase todos tivemos de passar necessariamente, como num corredor polonês, na condição de vítimas de boa fé, de crédulos ingênuos, numa etapa inevitável em que acreditávamos caminhar na direção correta do processo libertário que almejávamos não só para o nosso pensamento, mas para a Humanidade toda: o humanismo revolucionário.

Refiro-me ao direcionamento extra-curricular e, também, mediático supostamente “alternativo”, perpetrado por manipuladores ardilosamente periféricos às deficiências em que são propositalmente mantidas as instituições formais, armando verdadeiras emboscadas para os inquietos e insatisfeitos, ao camuflarem-se na cenografia atraente das “vias revolucionárias”, em particular as que se autoproclamam “de esquerda”.

Nada perdemos, claro, por nos debruçarmos nos ensinamentos de Sócrates, Platão, dos iluministas, da revolução francesa, de Napoleão e tantos outros pré-moldados do ensino oficial, nitidamente importados da Europa, ainda que intoxicados “de fábrica”. Nem vamos dar por perdido o tempo dedicado ao conhecimento dos “proibidos” consentidos pelos mesmos fornecedores, tais como Marx, Lenin e um vasto etcétera (vamos economizar espaço, o leitor entende).

A queixa é contra o pouco ou nenhum caso que fazem ambos esses “diretores do conhecimento” da nossa própria história, dos nossos pensadores e fatos de relevo, muitos dos quais não só são muito mais interessantes, mais profundos, mas, antes de tudo, humanistas e autenticamente revolucionários. E quando digo nosso refiro-me não somente ao Brasil, mas a toda a América Latina, a Nuestra América.

Reproduzo aqui um trecho da entrevista que fiz alguns anos atrás com o recém falecido escritor paraense Benedicto Monteiro, que foi publicada, em parte, na Caros Amigos:

MD - Então estamos perdendo mesmo a Amazônia?

BM - Infelizmente, estamos. Mas eu ainda acredito no nosso povo. No passado, foram os mestiços que fizeram a Cabanagem. Eu digo que a Cabanagem foi a única revolução do mundo em que o povo depôs o poder e assumiu de fato o poder. E isto aconteceu no Pará, em 1830. Veio a repressão, e matou mais de quarenta mil pessoas. Tivemos em Eduardo Angelim o grande herói revolucionário. Ele liderou uma verdadeira revolução brasileira, e eu digo revolução no sentido inclusive marxista - era o povo que derrubava o governo alienígena, imperialista, gente vindo de fora para governá-lo. Um povo que queria e sabia como assumir e conduzir o poder em sua própria terra.

MD - A Revolução Caraíba? Ou um precursor de Solano Lopes no Brasil?

BM - Não, não era uma revolução de um ditador. Era o povo conquistando o poder. Mas o pior é que os próprios paraenses não sabem nada disso. Eu estudei no Colégio Marista, no Pará, na década de 40. Alguns professores eram franceses, e eu saí de lá sem saber nada sobre a Cabanagem, sobre o Pará e o Brasil. Mas sabendo tudo sobre a França e a Revolução Francesa!

Benedicto se confessa vítima do ensino oficial, mas outro grande pensador, Oswald de Andrade, em sua brilhante trajetória de poeta, escritor e estudioso, amargou o corredor polonês “de esquerda” entre 1930-1945, período duro, em vista do que dedicou-se depois a cobrir muitas das lacunas criminosamente abertas na formação do intelectual brasileiro, entre as quais o desprezo pela Inconfidência Mineira como berço do nosso processo cultural e libertário, o pouco caso com as obras de Machado de Assis e Euclides da Cunha e o completo descaso pelas raízes autóctones e africanas naquilo que, depois, Darcy Ribeiro chamou de processo civilizatório brasileiro. No combate interno e externo contra a cultura européia que importamos a altos custos, Oswald deixou um legado fabuloso e praticamente desconhecido, mas não teve tempo de vida suficiente para vislumbrar o lado americano das imensuráveis fronteiras do Brasil com nossos vizinhos continentais. Foi Darcy que, posteriormente, se deu a esse trabalho e também nos trouxe contribuições importantíssimas. Ambos foram amaldiçoados pelos próceres da oficialidade e da “esquerda” e permanecem relegados ao olvido.

Mas o que traz este protesto da Gazeta provém de algo ainda mais grave.

Em 1974, andei por Lima, no Peru, e foi quando percebi que estava sendo enganado. Darcy Ribeiro estava lá, exilado. Na minha bagagem vieram livros como os de José Carlos Mariátequi (Sete ensaios) e José Maria Arguedas (Los rios profundos).

Atualmente, as minhas incursões por internet em veículos de língua espanhola começam a descortinar o tamanho do engodo. Chega a ser assustador o descobrir-se, assim, tão ignorante: no horizonte, nomes como os de Miranda, Simón Rodrigues, Martí, Sucre, San Martin, Artigas, Morazan, Sandino e até o brasileiro Abreu e Lima surgem, entre vários outros, grandiosos, na galeria dos titãs históricos com os quais deveríamos ter familiaridade desde o grupo escolar. Sem falar das façanhas que protagonizaram, em alguns casos muito para além das obras primas geniais que nos legaram. Estão cuidadosamente escondidos, leitor, principalmente o mais perigoso de todos, que só agora, com quase sessenta anos e a cabeça bem branca, tenho acesso em língua brasileira, talvez pela primeira vez traduzido em obra de peso: Simón Bolívar.

Por que será Bolívar tão perigoso para o nosso conhecimento?

É bastante chegar à página 3 da leitura dessa antologia (1) para sabermos a resposta. Depois de longa estadia na Europa, circulando por vários países e capitais, tendo por guia o seu mestre, o sábio educador Simón Rodrigues, ele, com apenas 22 anos, já viúvo, diante das ruínas do Império Romano, no Monte Sacro, em Roma, escreveu e pronunciou em voz alta, diante do mestre e de várias testemunhas, o belíssimo texto que começa assim:

“Então, este é o povo de Rômulo e Numa, dos Gracos e dos Horácios, de Augusto e de Nero, de César e de Brutus, de Tibério e de Trajano? Aqui todas as grandezas tiveram suas peculiaridades e todas as misérias seu berço.”

E, depois de uma síntese erudita, analítica e bem articulada da cultura européia até os seus próprios dias, conclui assim:

“Este povo deu para tudo, menos para a causa da Humanidade: messalinas corrompidas, agripinas sem entranhas, grandes historiadores, insígnes naturalistas, guerreiros ilustres, procônsules rapinantes, sibaritas desenfreados, apuradas virtudes e crimes grosseiros, mas, para a emancipação do espírito, para a extirpação das preocupações, para o enaltecimento do homem e para a perfectibilidade definitiva de sua razão bem pouco, para não dizer nada. A civilização que foi soprada do Oriente mostrou aqui todas as suas faces, revelou todos os seus elementos; mas, quanto a resolver o grande problema do homem em liberdade, parece que o assunto foi ignorado e que o desfecho dessa misteriosa incógnita não há de verificar-se senão no Novo Mundo.” (grifos da Gazeta)

Dito isto, o quase menino fez, solenemente, um juramento dirigido a seu mestre:

“Juro perante o senhor; juro pelo Deus de meus pais; juro por eles; juro pela minha honra e juro pela minha Pátria que não darei descanso ao meu braço, nem repouso à minha alma, até que tenha rompido as correntes que nos oprimem pelo poder espanhol!”

Ele é o jovem gênio americano que primeiro desmascarou o embuste da pretensa “superioridade” da civilização européia e jurou expulsar o Império que oprimia o seu povo e a sua Pátria. E cumpriu o juramento.

Falaremos mais sobre ele.


(1) Simón Bolívar – o Libertador; compilação, notas e cronologia Manuel Pérez Vila; Biblioteca Ayacucho – Caracas, Venezuela; Adipro (trad. Ruth Elizabeth Pucheta); Rio de Janeiro, 2007. Distribuição: Embaixada da República Bolivariana da Venezuela, Brasília, DF.