quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Gazeta em forma de e-meio 102

Reflexões do gazeteiro (continuação)

Foi com um desses filósofos clássicos, acho que Dilthey ou Spinoza, que aprendi serem os trabalhos pioneiros das diversas disciplinas das “ciências do espírito” (termo diltheyano) portadores dos fundamentos que as regem, fora dos quais qualquer trabalho posterior se perde em desvios sem saída e até na própria negação da disciplina a que pretende aportar contribuição. Sendo o jornalismo uma dessas disciplinas, creio que a abordagem dos fundamentos revelados por seus pioneiros poderá ser um bom ponto de partida para uma reflexão sobre o que ocorre no jornalismo atual.

Com o advento da internet, o jornalismo, digamos, acadêmico, que era considerado historicamente descendente do jornalismo pioneiro, foi corrompido pelo mercantilismo e contaminado pela propaganda, o que resultou na sua senilidade seguida de lenta agonia, e veio a falecer completamente. Ao mesmo tempo, renasce, em sua essência original, um jornalismo “novo” que cresce e se espalha em inúmeros sites, blogs e outros dispositivos da internet, retomando os fundamentos do jornalismo pioneiro e as razões que deram existência a essa importantíssima disciplina do conhecimento.

Sem compromissos acadêmicos nas análises da história, a Gazeta tem uma leitura própria sobre os fundamentos originais do jornalismo, os quais, para ela, responderam a uma necessidade social libertária contra a opressão capitalista, já nos meados do século XVII. A manipulação dos oprimidos sempre foi uma constante nos regimes patriarcais, onde prevalecem a propriedade privada da terra e a divisão da sociedade em classes. A tática mais comum é a de usar as instituições acreditadas pelo povo; manipulando-as, iludem a boa fé da credulidade popular. É mais antiga do que se pensa a história da “roupa do Rei”, a que Andersen daria forma literária definitiva.

A entrada em cena da Revolução Industrial agudizou o problema. A necessidade de estar informado passou a ser crucial para formar opinião e tomar decisões, em níveis individuais e coletivos. As sociedades não podiam ficar à mercê dos exploradores e enganadores de ofício nem depender de uma criança espirituosa que as avisasse dos engodos. É, pois, na demanda por informação veraz e com análise crítica, a denúncia, que nasce o jornalismo pioneiro, na espontaneidade das gazetas em forma de carta, primeiramente copiadas e remetidas a diversos destinatários, depois impressas, multiplicadas e lidas em praças públicas para logo se tornarem periódicas, bimensais, mensais, quinzenais, semanais até se configurarem nas gazetas “del giorno”, isto é, os diários, os jornais.

Um bom exemplo dos primórdios do jornalismo em nossa língua foi a “cobertura” dada em Portugal às diversas viagens a Lisboa do brasileiro Bartolomeu de Gusmão, o nosso “Padre Voador”, em particular nas gazetas em forma de carta de José Soares da Silva, um dos mais importantes gazetistas europeus dos fins do século XVII e início do XVIII.

Desde a primeira viagem, em 1701, o ainda adolescente Bartolomeu de Gusmão causara assombro no reino de Portugal pela fama que por lá se espalhou de sua prodigiosa inteligência, capacidade de memória e talento (vamos manter a grafia original de Soares da Silva), “pois de 15 para 16, dizem que sabe o que contem a memória infra inscripta; o que parece excede a capacidade do tempo, ainda que fosse imprimindo-lhe fielmente na memória tudo quanto lesse, sem lhe discrepar hum apice, como dizem que ele faz, e lhe fica tudo quanto hua vez passou pelos olhos”. A história não confirma nem desmente o prodígio do qual desconfia o gazetista, mas o fato é que o nome do jovem volta às “manchetes” européias em 1709, desta vez com uma verdadeira bomba, assim noticiada pelo mesmo gazetista, quando relata a chegada daquele “celebre estudante americano, que aqui esteve annos atraz, não já para declamar de cór, de traz para diante e de diante para traz, as odes de Horácio e os livros da Escriptura, mas para impetrar d’El Rey D. João V, um inesperado e singular privilégio de invenção. (...) No mesmo tempo, em que temos tão poucos homens, que saibam andar pello mar, e pela terra se achou hu que quer andar pello ar, e fazer 200 legoas por dia, e para este effeito deo petiçam a Sua Magestade, em que produz o arbitrio e pedio privilegio, para que descuberto o tal arbitrio, e executado por elle lhe fizesse Sua Magestade alguas mercês”.

Nessas “200 legoas por dia” cresceram os olhos ganaciosos de muito interesse, e a “nuova navigazione per andare alle Indie senza toccare la Tramontana, mas direttamente per Levante” já era noticiada ao Papa, no Vaticano, e assim era defendida a petiçam do jovem gênio brasileiro pelos próceres chegados a Sua Majestade, pensando, claro, nos benefícios imediatos (mercês) que lhes seriam auferidos desde alí, ademais de sonhar com os futuros que colheriam a bastança se, porventura, estivessem diante de um novo Vasco da Gama: “... por que enteressa a Vossa Magestade muito mais do que nenhum dos outros Principes, pella Mayor distancia de Seus dominios, evitandose desta Sorte, os desgovernos das Conquistas que provem em grande parte chegar muito tarde as noticias dellas. Além do que poderá Vossa Magestade mandar Vir o precioso dellas, muito mais brevemente e mais Seguro ...”

Quer dizer, a mordida no erário já estava preparada, já começava a ser dada pelos que podiam fazê-lo de imediato, e iria longe, muito longe, o engodo na “opinião pública” (como hoje sabemos que podem ir até ao infinito) para respaldá-lo, não fosse a denúncia do gazetista ao reportar as primeiras experiências da invenção que a Europa toda aguardava ansiosa - pois na época a simples possibilidade do transporte aéreo era equivalente à do transporte intergalático hoje -, nesta obra prima do jornalismo pioneiro:

El Rey os dias passados também o apertou de sorte a falta de respiração que lhe sobreveyo á sua queixa que a toda a pressa o sacramentaram de noute. Porém com a nova cura que fez logo, está com conhecida melhoria em hum e outro achaque e já anda erguido e composto; como assistio a varias comedias que agora se fizeram no Paço. E hum dia destes ao Voador, que, na sua presença, na casa do Forte debaixo da das embaixadas, foy fazer a primeira prova do seu engenho, levando para isto hum globo de papel o qual dizia elle, por si mesmo se havia de elevar aos ares, mettendo-lhe dentro hua vela acesa, e fazendo a primeira vez, voou elle com brevidade, porque lhe pegou o fogo, e ardeu inteiramente, e para isto ha mais de quatro mezes que anda trabalhando nas taes fabricas, o que pudera fazer em quatro horas, ao menos, ou ao mais em 24 como fez no segundo globo, que levou no segundo dia ao Paço, o qual se não ardeu como o primeiro, fez o que qualquer fizera porque gastando pela luz o ar, que continha dentro o globo, o ar ambiente natural muito o arrebatou ao alto da casa como não tinha outra materia mais que papel, e assim tornou outra vez a descer como subira, sem fazer mais nada que he o que basta, para andar duzentas légoas por dia, e levar as quarenta arrobas de peso. Se isto não se vira não se crêra.”

Por mais impiedosa seja a verdade, é dever do jornalista enunciá-la. A verdade é a matéria prima do jornalismo, assim como a luz é a da fotografia. Mesmo que o nosso desejo patriótico fosse o de que Bartolomeu de Gusmão fosse reconhecido como o precursor da aeronáutica, depois da contundência do relato jornalístico de José Soares da Silva, queda inútil qualquer esforço neste sentido; não podemos reivindicar para o nosso compatriota sequer a invenção do balão de São João, pois foram imigrantes chineses que nos ensinaram a fazê-los, no Ciclo do Ouro, a partir de milenares tradições da cultura oriental. Assim, a verdade denunciada através do jornalismo é util não só aos contemporâneos como faz um grande favor à História. Ninguém quer ser enganado.

A Gazeta permanece no tema.