sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Gazeta em forma de e-meio 104

Reflexões do gazeteiro (IV)

Nesta série de artigos, a vinculação do jornalismo com a aeronáutica surgiu da coincidência histórica em que dois brasileiros de distintas épocas protagonizaram papéis centrais relacionados à criação da aeronáutica e, nos dois casos, foi o exercício honesto do jornalismo que não só assegurou à história a verdade dos fatos como deles participou de forma decisiva em seus processos e desfechos.

Isto levou o gazeteiro a refletir sobre a importância do jornalismo como supervisor humanista e crítico do progresso tecnológico, em particular no período conhecido como o da Primeira Revolução Industrial, e ao fato de que estas reflexões foram, desde o início, direcionadas a indagar o que aconteceu com o jornalismo no período que seria o da Segunda Revolução Industrial, em que agora vivemos o seu epílogo.

Os historiadores acadêmicos identificam essas duas revoluções com os ciclos da máquina a vapor e da eletricidade. Contudo, este gazeteiro sem compromissos acadêmicos prefere identificá-los, como insinua Gondim da Fonseca em texto citado na última Gazeta, com os do carvão e do petróleo. Se no primeiro predominou a máquina a vapor (movida a carvão), cujo progresso tecnológico foi impulsionado pelo transporte sobre trilhos, na segunda predominou o motor a petróleo (inclusive para a geração de eletricidade), tecnologicamente impulsionado pela aeronáutica.

Como já vimos, foi graças à supervisão humanista e crítica do progresso tecnológico que o jornalismo de então exercia que Santos-Dumont, por sua obra e atitude ética, tornou-se a personagem chave na inauguração da Segunda Revolução Industrial. Mas, como veremos mais à frente, seria no embate que em torno da saga do inventor se travou entre aquele jornalismo e os mais poderosos interesses capitalistas que as coisas começaram a mudar negativamente para a Humanidade.

Em recente conferência pronunciada no México, Noam Chomsky observou que “a Humanidade progrediu muito tecnologicamente, cientificamente, industrialmente, porém esta surpreendente evolução material se distancia muito da outra evolução, aquela que alimenta o ideal do espírito humano: paz, justiça, bem estar...” Chomsky está se referindo, evidentemente, à Segunda Revolução Industrial, e o gazeteiro substituiria o termo bem estar pela palavra cultura, uma vez que, numa sociedade tecnologicamente avançada, ela implica também a liberdade e, consequentemente, o bem estar. “Ser culto para ser livre”, dizia José Martí, sintetizando a ideologia bolivariana.

Apesar da simplicidade quase óbvia da observação de Chomsky, ela é muito importante para nós por tocar a medula destas reflexões. Principalmente quando se constata que, desde o começo da Primeira Revolução Industrial, é o jornalismo - como fator de resistência à manipulação capitalista nascente - a principal atividade difusora de cultura e de informação veraz aos povos da Terra, estivessem eles organizados em Estados soberanos ou em processo de libertação das colonizações de que eram vítimas.

No exato momento em que Santos-Dumont realizou o glorioso vôo do 14 Bis, em 12 de novembro de 1906 – que teve repercussão mundial -, os interesses capitalistas viram evaporarem-se os lucros que as patentes do mais pesado que o ar lhes prometiam assim como suas pretensões de dominar o mundo pelo controle dessas patentes. E trataram de reagir. Foi então que se articulou a primeira grande fraude de imprensa em nível mundial: os irmãos Wright. Os fatos demonstraram que ela estava sendo preparada com antecedência a fim de tentar neutralizar a vitória de Santos-Dumont, que vinha se anunciando e era bastante previsível, ainda que não de forma tão contundente.

Fora articulada um tanto desajeitadamente pelo magnata norte-americano Gordon Benett, o cidadão Kane do momento, e seus jornais Herald, de Nova York e de Paris, precursores clássicos dos impérios midiáticos que lhe seguiriam, em conluio com o embaixador dos EUA na França, Henry White, e o banqueiro Lazare Weiller.

Para o melhor entendimento de como ela foi articulada, como se sucedeu, suas causas e consequências para a época e para a História, se faz mister aportarmos informações pouco conhecidas sobre aqueles fatos decisivos e de suma importância para a detonação e o desenrolar da Segunda Revolução Industrial, que ainda se reflete em nossos dias.

Na busca histórica de mais de quatro séculos pela conquista dos ares através de um aparelho mais pesado que o ar, é possível identificar três correntes de pensamento lógico que se destacaram:

a) a que vislumbrava o helicóptero como mecanismo elementar, inaugurada por Da Vinci, Roger Bacon e outros, a qual prosseguiu ocupando os sábios pelos séculos afora sem, contudo, encontrar solução para o problema do contra-giro da cabine do piloto em reação à força do giro (torque) da hélice do aparelho uma vez em vôo, por falta de ponto de apoio. Da Vinci já propusera uma solução teórica pelo uso de duas hélices girando em sentido contrário e em velocidades exatamente iguais, uma anulando o torque da outra, mas, na prática, não se dispunha de tecnologia capaz de realizar tal exatidão, e a menor diferença de torque entre as hélices inviabilizaria o mecanismo. Tais especulações sequer saíram do papel e nem chegaram ao problema da propulsão que, até os meados do século XVIII, ainda imaginava-se que poderia ser humana, isto é, a pedaladas. Com o advento da máquina a vapor, a idéia começa a ganhar força e interesse realistas, os quais se incrementaram com a chegada dos motores a petróleo. Santos-Dumont, que pelo conjunto da sua obra não pertence a essa corrente, também tentou a solução do problema, sem êxito. Como vimos, só em 1939 Sikorsky o solucionou incorporando uma cauda ao aparelho e aplicando a hélice estabilizadora em seu extremo, criando assim a força aerodinâmica suficiente para compensar o torque da hélice de sustentação (asa rotativa) e estabilizar a cabine. Por incrível que pareça, recentemente a ciência conseguiu tecnologia para as duplas hélices girando em velocidades exatamente iguais em sentidos opostos, e a indústria aeronáutica russa já fabrica helicópteros de última geração sem a hélice de estabilização, tal como imaginara Da Vinci;

b) a que se desenvolveu com mais força no século XIX e tinha por fonte de pesquisa a Natureza, mais propriamente os pássaros, em que se destacaram célebres cientistas como Lilienthal, Langley, Chanute, Ader e muitos outros que, mesmo tendo conseguido algumas surpreendentes aproximações de projeto do que seria futuramente um aeroplano (em particular o Avion, do inglês Ader, que copia o morcego), não lograram viabilizá-lo por não encontrarem propulsão ao mesmo tempo leve e poderosa capaz de fazê-los sair do solo. Colecionaram protótipos que variaram do absurdo ao factível, incontáveis tentativas fracassadas e lamentáveis acidentes fatais como o de Lilienthal, mas depois que a aeronáutica se tornou realidade tem sido retomada por importantes projetistas, em particular os da Segunda Guerra Mundial; e

c) a que se desenvolveu em sentido oposto à anterior, no início do século XX, a partir dos progressos da ciência e da mecânica para a busca de formas de sustentação e meios de propulsão que solucionassem a questão peso-potência para fins aeronáuticos. A esta pertenceram boa parte dos que tiveram êxito palpável, antes e depois do Demoiselle, em que se destacaram Farman, Voisin, Bleriot, Santos-Dumont e vários outros nomes importantes. Santos-Dumont costumava dizer que “a Natureza nunca foi boa mestra para a mecânica; por ela teríamos trens com pernas de ferro e navios com barbatanas”.

O fato é que, no início do século XX, depois de todo um imenso esforço humano empenhado na questão, o único aparelho mais pesado que o ar controlado pelo homem que se conhecia capaz de voar era o tradicional e milenar papagaio (ou pipa) chinês. Este inocente brinquedo foi, contudo, o motivo de dois enormes equívocos que desnortearam os pioneiros da aeronáutica e só foram solucionados por Santos-Dumont:

1) o de que uma estrutura cúbica celular era capaz de sustentar uma aeronave de tamanho suficiente para transportar pessoas e cargas; e

2) o de que a estabilidade e a propulsão de uma aeronave seriam “ajudadas” na decolagem pelo vento a favor, ou seja, o de que a trajetória de decolagem deveria ser no mesmo sentido do vento que soprava na pista.

Foi no vôo do 14 Bis que Santos-Dumont desfez o segundo equívoco. E este foi o maior mérito do 14 Bis para o futuro da aeronáutica. Depois de várias tentativas mal sucedidas de decolagem, Santos-Dumont percebeu que o vento só o prejudicava e decidiu fazer uma tentativa em sentido contrário, ou seja, contra o vento. Muitos dos experts que acompanhavam a experiência pensaram que ele tinha ficado louco. A mesma comissão de arbitragem não tinha previsto medir o vôo feito em sentido contrário ao do vento. Assim, o registro da saída do solo acabou se estabelecendo a partir de uma fotografia obtida naquele exato momento, e na qual aparecia um homem com uma bicicleta alinhada com as rodas que deixavam o solo. O ponto de decolagem foi marcado pela posição da bicicleta, que pôde ser verificada com precisão por referências estáticas do local, e o de pouso foi marcado pelo juiz que deveria marcar o de decolagem. Não se pode dizer que aquele fora exatamente um vôo; foi muito mais um salto impulsionado pelo poderoso V8 de 50 HP, recém projetado e construído pelo inventor, o qual, ao enfrentar um bom vento contrário, era capaz de tirar do solo até um piano de cauda.

Mas a descoberta, em sua mais elementar simplicidade, não só desfez um equívoco tremendo como inverteu toda a lógica de pesquisa e projetos pioneiros. Já no número 15, que imediatamente se seguiu, Santos-Dumont chegou perto das características elementares do aeroplano futuro. Virando o 14 Bis pelo avesso, mandou para a popa os comandos de leme e profundor e colocou-se, como piloto, sentado e à proa. Mas o primeiro equívoco ainda permanecia nas estruturas cúbicas celulares de sustentação que formavam as partes do aparelho que já eram chamadas de “asas”. E, no Nº 15, feitas de madeira compensada e, portanto, ainda mais pesadas que as do 14 Bis, que eram de lona. Foi um fracasso.

Mas assim é a trajetória dos gênios. O conhecimento e as descobertas não surgem de forma direta e linear. Os três projetos que se seguiram ao Nº 15 podem parecer confusos e fora de propósito para quem participava de uma corrida tecnológica com o objetivo concreto de fazer voar um aparelho mais pesado que o ar. O Nº 16, talvez o mais belo design de balão dirigível jamais realizado e colocado em vôo; o Nº 17, em que, nos protótipos inacabados, foram abandonados dois projetos de helicópteros; e o Nº 18, um deslizador aquático de alta velocidade, com o qual o inventor testou várias novidades em estruturas náuticas e aeronáuticas. Em determinados momentos, em geral os mais difíceis, o inventor percebe que a solução está bem perto dele, a ponto de poder tocá-la com os dedos, mas não a encontra, por mais que quebre a cabeça. Nestes casos, há que esperar um insight, assim como o poeta, quando a musa lhe parece ausente, tem de aguardar a inspiração. Enquanto isso, o gênio não pode parar, faz o que pode com o que tem à mão e nada perde com isso. “Os gênios não erram; seus erros são volitivos e são portais de novas descobertas” (James Joyce, Ulisses)

Eis que, então, surge o insight. E, no caso de Santos-Dumont, o “achado” que estava achado há tempos: as asas de perfis aerodinâmicos de Lilienthal, Chanute e Ader, copiadas da natureza e tão antigas quanto as de Ícaro, cuja imagem, por sinal, ilustrava o ex-libris do inventor. E os ailerons, que ele mesmo havia criado para o 14 Bis, e os aplicara justamente no vôo da vitória, mas não dera com o valor que tinham, talvez porque com eles se esborrachara e destruíra o 14 Bis numa tentativa posterior para aprimorá-lo. Tanto é que não os usou no Nº 15.

Eis, então, que surge, sem alarde, o Nº 19, a “libélula”, com a sua cauda de bambu que logo seria substituído, no Demoiselle (Nº 20), por uma estrutura rígida de seção triangular que lhe daria a firmeza e a maneabilidade do aeroplano que nele nascia, junto com a aeronáutica do século XX. Tudo isto - do vôo da vitória no 14 Bis ao Nº 21, o definitivo Demoiselle -, ocorreu em menos de dois anos. E a história da aeronáutica só tem o Demoiselle para apresentar como marco concreto e berço da aviação civil, que, no ano passado, 2008, se fez centenária, porém sem nenhuma comemoração.

Por que será?

Por que foi tão celebrado nas manchetes de primeira página dos principais jornais do mundo o vôo do 14 Bis, sem dúvida um passo importante na conquista da aviação, e o advento do Demoiselle, a primeira aeronave que efetivamente realizou o sonho da aeronáutica para a humanidade, até com a sua pioneiríssima fabricação em série por duas importantes indústrias francesas, quedou quase invisível em notas de páginas internas e até hoje permanece num limbo histórico injusto como apenas um projeto a mais de Santos-Dumont, inclusive nas obras de seus muitos e grandes biógrafos?

Ficará para a próxima Gazeta a análise e, se possível, a resposta desta questão, e não estamos prometendo especulações, mas a revisão crítica sobre fatos concretos e bem documentados, a qual, uma vez que sustentada nas informações aqui aportadas e no que tange a tudo o que conhecemos do assunto, será uma abordagem inteiramente inédita para aqueles tão importantes quanto decisivos eventos históricos.