quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Gazeta em forma de e-meio 105

Reflexões do gazeteiro (V)

A fraude caminhou com dois objetivos: neutralizar as vitórias de Santos-Dumont e criar um fato novo que viabilizasse o privilégio das patentes em nome dos fraudadores. Foi relativamente bem sucedida no início, mas a História, como veremos, lhes pregaria uma peça. Pelo que conhecemos das histórias da imprensa e do jornalismo, aquela fora a primeira grande tentativa de manipulação da verdade através da imprensa jornalística.

As histórias da imprensa e do jornalismo são disciplinas distintas; porém, naquele momento viviam numa profunda inter-relação transformadora. O jornalismo heróico que começara nas antigas gazetas jogara um papel importantíssimo em todo o decorrer do século XIX em favor das causas libertadoras em quase todo o mundo, e entrou no século XX gozando de tanta credibilidade e de tal reputação que mal conseguia atender uma pequena parte da crescente demanda dos que queriam desfrutar de sua produção. Nessa fase heróica, o jornalismo era produzido artesanal ou semi artesanalmente e, desde as primeiras e bem sucedidas gazetas, vivia exclusivamente de seus leitores e assinantes. Gente muito exigente, por certo, e que não pagava para ler bajulações a poderosos, para ser enganada ou para perder tempo com inutilidades.

Em nossa América multiplicaram-se os grandes exemplos como os de Bolívar e sua “artilharia do pensamento”, o Correo del Orinoco, diário anti imperialista lançado em 1818 e que contribuiu decisivamente para a expulsão definitiva do império espanhol; os cabichuy paraguaios, editados e publicados nos fronts de batalha, que infernizavam as forças da “tríplice vergonha”; e O Sentinela do Serro, que Teófilo Otoni fazia imprimir em sua gráfica ambulante em lombo-de-burro levantando Minas contra as tropas de Caxias pela causa republicana. Estes são apenas três entre os milhares de jornais que se propagavam pelo mundo afora alçando os povos pela liberdade e cristalizando uma nova forma de comunicação de alta eficiência e rapidez que pôs em polvorosa os poderes imperialistas e absolutistas, participou ativamente da derrubada de muitos deles e ajudou a consolidar importantes forças populares, libertárias e revolucionárias.

No início do século XX, pode-se dizer que, depois da aeronáutica, foi a imprensa, entre as atividades produtivas humanas, a maior responsável pela Segunda Revolução Industrial, que ali apenas se iniciava. E tal avanço tecnológico se daria, pela primeira vez na história da imprensa, para atender as demandas criadas na fase heróica do jornalismo. Na célebre exposição de Paris, em 1900, Hipólito Marinoni, o mais prolífico inventor de máquinas gráficas da época, apresentou o protótipo da maior e a principal de suas últimas invenções: a impressora rotativa de jornais. Em 1903, quando Santos-Dumont fazia vôos rotineiros nos céus de Paris com seus dirigíveis, o Petit Journal, de Paris, tornou-se o primeiro órgão de imprensa do mundo a instalar uma rotativa Marinoni em suas oficinas. Começava a fase industrial da imprensa jornalística. E, com ela, o poder do grande capital sobre o jornalismo e a informação para as massas.

É neste contexto que se insere o oportunismo dos capitalistas norte-americanos, ali representados por John Rockfeller, Gordon Benett e o embaixador Henry White, em conluio com a ganância de banqueiros inescrupulosos (desculpem-me pela redundância) como Lazare Weiller e a avidez de outros capitalistas, políticos e oficiais militares europeus corruptos (uma longa lista, encabeçada pelo Barão de Rothschild), para pressionar e chantagear as empresas jornalísticas em fase de expansão e, portanto, de alto endividamento.

Mas não seria tão fácil assim. Se, por um lado, podiam pressionar as empresas pelo poder de seus capitais, por outro nada podiam com os leitores dos jornais, que eram bem informados pela boa qualidade do jornalismo de que desfrutavam. Assim, para fazer descer goela abaixo da sociedade a farsa dos Wright, os fraudadores tinham de se obrigar a fazer o que mais detestavam: pôr a mão nos seus próprios bolsos para subvencionar os prejuízos das quedas nas vendas avulsas e das assinaturas, sem contar a veemência dos protestos dos leitores mais rigorosos, que viam suas inteligências insultadas pelas mentiras grosseiras que a farsa impunha. Em defesa da ética, de seus nomes e reputações, também os jornalistas resistiram com energia e bravura.

Foi uma queda de braço. De fato, conseguiram abafar bastante a repercussão mundial do vôo do 14 Bis em 12 de novembro de 1906, que, apesar de ter sido o “Vôo da Glória”, teve menos destaque que o anterior, de 23 de outubro, em que o 14 Bis saltou apenas 30 metros, o que lhe bastou para conquistar a Copa Archdeacon. E nem se comparam as repercussões de tais vôos com o estrondoso sucesso mundial de 1901, quando o Nº 6 circundou a Torre Eiffel pela primeira vez na história da aeronáutica.

Por outro lado, só com os cabogramas de Oklahoma a historieta dos Wright não saía do limbo das dúvidas e das mentiras mal contadas, por mais que se forçasse a barra. O jeito foi prometer a ida dos ilustres desconhecidos aviadores a Paris para exibirem o fenômeno aeronáutico que os cabogramas informavam, sem provas, teriam “inventado” três anos antes e para o qual reivindicavam primazia e privilégio de patentes.

Contudo, se na imprensa jornalística e na opinião pública a farsa emperrava, nos gabinetes fechados dos arranjos inconfessáveis tudo ia de vento em popa. Há registros de que Lazare Weiller investiu 500.000 francos só na demonstração dos Wright em Paris. E os exércitos dos EUA e da França apostavam fichas altas nas reservas de direito de uso das patentes, com exclusividade nos respectivos continentes. Enfim, a dinheirama rolou solta por aquelas bandas.

Mas é então que surge a História. O Instituto de Patentes não registra abstrações nem fatos jornalísticos, registra engenhos concretos, apresentados em formulações científicas claras que explicam seus funcionamentos em bases lógicas, e em protótipos reais que os confirmem na prática. Eis que, no caso, os fraudadores planejaram tudo com base em conhecimentos e experiências que vinham sendo produzidas naqueles últimos três anos em artefatos mais pesados que o ar, e que culminaram no 14 Bis. Como vimos na última Gazeta, no vôo do 14 Bis não se deu nenhuma invenção do aeroplano, mas a elucidação de um grande equívoco, que, em pouquíssimo tempo, mudou radical e completamente o rumo de tudo o que vinha sendo feito.

Tal mudança de rumos pegou os farsantes pelo pé. O Flyer apresentado por Orville Wright em Paris, em 1908, era um híbrido de várias experiências que, de uma hora para a outra, se viram ultrapassadas e vencidas. E ainda se jactava de inovador pelo uso do tal Pylon na decolagem catapultada, e não de rodas para a decolagem autônoma! Decolava a favor do vento, claro, pois a catapulta o atirava na corrente aérea, com o que pensavam ter achado a solução do problema que os pioneiros enfrentavam para sair do solo. Porém, tal problema não era mais que um enorme equívoco na abordagem dos princípios aerodinâmicos básicos, o qual finalmente foi elucidado por Santos-Dumont em 12 de novembro - eis aí o motivo principal do monumento com a inscrição histórica que lhe consagrou o Aero Clube de Paris na Praça de Bagatelle.

Mas foi assim, com o “pioneiro engenho” pseudovoador dos Wright, o Flyer, que os farsantes, com tanto empenho, pressão, chantagem e muita, muita grana, lograram, enfim, o perseguido registro e privilégio de patentes.

Só que, quando o lograram, o verdadeiro aeroplano já estava voando em bases lógicas e científicas totalmente diversas e até opostas, e suas patentes e direitos plenamente entregues ao domínio público, já entrando em linha de fabricação em série, e, pouco depois, publicadas em revista de distribuição mundial, em vários idiomas. E todos os países do mundo puderam desenvolver suas próprias pesquisas aeronáuticas livremente a partir daquele que acabou sendo o primeiríssimo aeroplano: o Demoiselle.

As patentes do Flyer caíram no olvido, tal como seus “inventores” desapareceram da História, quase por completo. Foram, porém, ressuscitados uns trinta anos mais tarde, no início da Segunda Guerra Mundial, pelos marqueteiros de guerra da força aérea dos EUA encarregados de forjar heróis e pioneiros para alimentar a moral e o patriotismo de seus guerreiros do ar.

Quanto aos espertalhões farsantes; não saíram no prejuízo, apesar do contundente fracasso. Os povos dos EUA e da França os ressarciram, com lucros, através de gordos aportes em dinheiro que seus exércitos fizeram com recursos dos respectivos erários, para garantir a reserva de uso daquelas tão disputadas patentes que jamais usariam.

Essa primeira batalha do jornalismo contra o capitalismo ficou empatada, no juízo da História. Os Demoiselle voaram no mundo inteiro com quase nenhuma repercussão na imprensa e ainda hoje a primazia de seu projeto, como invenção indiscutível do aeroplano que ainda em nossos dias voa nos céus do mundo inteiro, é ignorada em sua importância histórica. Muitas outras batalhas do tipo se dariam ao longo do século XX, todas com graves perdas para a Humanidade, como constatou o já citado Noam Chomsky. Algumas delas serão temas das próximas gazetas. Aguardem.