quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Gazeta em forma de e-meio 106 - Especial

No contexto das reflexões do gazeteiro

Acabo de receber o texto jornalístico-crítico que reproduzo integralmente logo em seguida a esta introdução. Ele reflete um tipo de jornalismo a que estávamos habituados a frequentar nas páginas dos grandes jornais nas décadas de 60/70, e que hoje só é possível encontrar em certos sites da internet ou em publicações alternativas de pouca ou insignificante audiência. É o verdadeiro jornalismo, substanciado em conhecimento, inteligência, domínio da arte, interesse no fato, opinião independente e preocupação em bem informar o leitor. Não há mais esse tipo de jornalismo na mídia hegemônica. Eis porque são vários os bons autores que vêm tratando o assunto da morte da “grande” imprensa, como já assinalamos antes.

Neste caso, trata-se da crítica de um filme que, naquela época, estaria em cartaz em grandes casas de cinema - o leitor já o teria visto ou poderia vê-lo no mesmo dia, se quisesse, e, concordando ou não com as opiniões do jornalista, o certo é que estava servido de uma informação de alta qualidade sobre o fato cinematográfico em questão. Ainda no caso, este gazeteiro teve acesso ao copião do filme quando em fase final de montagem, antes da estréia dele no último Festival de Inverno de Ouro Preto, a que não pôde estar presente, e concorda desde já com as opiniões do crítico, mesmo que ainda não conheça a fatura final da obra.

Mas, também, não há mais os cinemas, enquanto grandes casas de espetáculos; o que há são salas ou saletas, em geral dentro de shopping centers, e a maioria incapaz de realizar uma boa projeção. Ademais, tais filmes jamais serão exibidos nelas, exceto em raríssimas exceções. A última vez que este gazeteiro esteve em uma delas, teve de deixar a sessão no meio, pois agora é comum pessoas entrarem nessas saletas com um balaio de pipoca de micro-ondas e um balde de coca-cola. O barulho da ruminação e o fedor no interior da sala tornam a sessão insuportável, seja o que for que estiver sendo projetado na tela. Como agora temos os DVDs, é preferível ver os bons filmes no recolhimento protetor da nossa própria toca.

O texto que se segue, por si só, enquanto tal e como texto jornalístico, mesmo que o leitor muito longinquamente ou por muita sorte possa um dia ver a obra cinematográfica de que trata, ainda assim a divulga, e, de certa forma até a difunde através da linguagem literária intrínseca ao bom jornalismo. Além do que, está no contexto desta sequência de reflexões da Gazeta e se insere perfeitamente, em modo não linear, no pensamento que aqui desenvolvemos. Ei-lo:

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AMAXON, UMA ODISSÉIA NA CRIAÇÃO PENSADA

Em memória de Jairo Ferreira

“ Uma coisa são sempre duas: a coisa mesma e a imagem dela. ”
(Carlos Drummond de Andrade)

Talvez tenhamos nos transformado nessa máquina horripilante de negação dos sonhos! E no que trituraram todas as singularidades, fomos transformados num exército de múmias, de burocratas, de deslumbrados e idiotas. Uma nova encenação do que seja, não pode ser mais uma condenação à nociva prostituição, achatada à TV. Deve-se ousar na desarmonia, do desnudamento da carne e do abandono na subjetividade. Ora, se o cinemão se realiza sem subjetividade criativa alguma, a nós deve interessar fundamentalmente uma nova linguagem gerada na teatralização de transcendências. Acrescente-se a isso que o país vive do seu esvaziamento há 509 anos, e mais programadamente há 45 anos. Ou seja, desde o golpe militar de 1964. Ora, como purificar artesanalmente esta quantidade infindável de urina e excremento?

AMAXON é um esforço poético-radical, para nos fazer pensar na complexidade do processo criativo. Ora, de que nos adianta fazer trabalhos de encomenda? Cinema virou filminho publicitário? O que muda nessa falência global de desencontros? O mundo hoje, visto pela TV, é só o lixo como mercadoria de quinta categoria, obviamente espetacularizado. Putas e canastrões são vendidos como profundos e sensíveis. Mas a quê? A “nota”? José Sette vai no sentido contrário de tudo e todos, elaborando com o seu quinto longa-metragem uma projeção de palavras a serem pensadas, fazendo um delicado filme que dá representabilidade a um pensamento sombrio expressivo, nessa sua transfiguração da normalidade do processo de criação. Sette vai aos extremos, numa escalada implacável rumo a uma poesia ainda que delicada, difícil para o grande público, todo condicionado a Hollywood e a TV.

AMAXON é o hospital-Brasil, em que todos somos condenados. A personagem da escritora reage ao internamento e tratamento, e se debate com uma coragem incrível. A linguagem do filme atravessa uma infinidade de vísceras, infernos e imaginações. A carne viva exposta, torna-se uma espécie de gozo trágico. Um filme-dor que nos remete ao teatro de Artaud. Incômodo aqui. Indizível ali. Longe e próximo de todos nós que sobrevivemos ao apocalipse de 1964. Não poderia ser um filme diferente. Foi difícil não apodrecer junto e continuar sonhando com um Brasil mais justo, humano e para todos.

Ainda assim, salvaram-se os poetas e os artistas. Vera Barreto como escritora é uma espécie de víscera exposta, sendo recolhida para continuar a ser demasiadamente humana.

Pouco importa que não seja um filme fácil, ou para muitos. É cinema! Um cinema que emerge de toda essa putrefação de 1964 a 2009. Sette trabalha com precisão a sua não-linguagem fácil, pois lhe interessa mais um fluxo poético de contradições gramaticais voltadas para o pensamento profundo e o cinema autoral. É o velho-jovem cineasta independente que agiganta sua escritora na solidão e na coragem de não ser comum. Que entre só sofrer e morrer prefere escrever enfrentando os seus muitos demônios. Que lê, bebe, fuma... se debatendo entre contradições geradas na TV, por um jornalista que, como todos, espetaculariza o caos ameaçando com a onda gigantesca, definitiva. Onda que até é mostrada, mas que não chega pois é apenas uma manipulação da comunicação, do dinheiro e da morte que sempre nos acompanha.

E se a representação do mundo e da política se tornou imbecil, compete à arte transformar todo esse excremento - numa espécie de teatralização de uma “escrita física” que Vera Barreto faz muito bem - num trabalho raro e exemplar, onde se realiza em sua intimidade frente à insatisfação da obrigação: a do livro de encomenda que precisa ser escrito. E uma vez mais, o conceito de subordinação ao dinheiro como a arte-terapia dos tantos e tantos eletrochoques de nossas vidas. É onde os porcos se acham mais fortes.

Entre livros e copos de vinho, em sua solidão, pensa na grande onda da sua insatisfação. A onda que está fora está dentro e desencadeia contradições levando-a nua aos seus próprios limites grandiosos de exposição poética. É uma escritora, mas é também atriz e mulher. E, ao entregar-se às suas pulsões transforma-se em crítica de si mesma, ainda que aguçando o seu desprezo pela “lógica” imperceptível da mercadoria e do consumo. O sistema sabe bem o que faz; se não tivermos um mínimo de sonhos, seremos transformados em imagens despotencializadas e vazias. A TV não faz isso todos os dias?

Sette não faz um cinema-coisa, a logo ser esquecido ou descartado. Nesse ponto aproxima-se de Tonacci, Sergio Santeiro, Eliseu Visconti, Jorge Mourão e da nova geração. Se “o mundo é apenas engano”, como afirmava François Villon, AMAXON o subverte desprezando o patamar qualitativo do sucesso fácil. Arbitrário como postura, investe no estilo insurrecional como ruptura e negação do obscurantismo avançado da domesticada política cultural do governo, seja lá de que partido for. E não são todos iguais lutando apenas pelo poder? Se a chantagem e o obscurantismo servem ao poder, de nada serve um cinema não idiota, essencial à representabilidade de uma vanguarda que não conseguiram matar. E que hoje convence muito mais que no passado.

É preciso frisar a importância de um filme feito do nada e que não se reduz à razão, que tudo tenta explicar. Neste sentido, reintroduz no cinema brasileiro complexas subjetivações necessárias ao crescimento de um público menos contaminado por partidos, por prostíbulos e pela TV, pois transgride permanentemente a ordem como instituição sagrada. A Sette e sua equipe interessa abandonar o manicômio das disciplinas do certo e do errado, sem sacrificar mais nada. Ao seu cinema interessam as diferenças e os deslocamentos possíveis, como acesso a um permanente ultrapassar-se. Sua trajetória é impar no nosso cinema. É um experimentador muito além do buraco negro em que transformaram o cinema brasileiro, e que fez um novo filme de uma lucidez atrozmente insuportável.

Sette torna profundo e feminino o discurso da personagem da escritora, e com suas imagens poderosas desfaz o território pouco ou nada significativo da TV, pois faz CINEMA! Dá significação a um novo olhar. Enfim, produz intensidades poéticas.

AMAXON são pedaços restituídos a um corpo, ainda que amordaçado pelo tempo, que passa para todos, poderoso e uma vez mais agigantado, pois se assume, indo além da representação e da escrita. E a vida que não deveria ser pobre e empobrecida como é torna-se gozo por parte de todos. Filme infinito ao reinventar a criação simbólica imperfeita. Ainda bem.

José Rosemberg Filho, Rio, 2009. (*)

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(*) publicado no site Via Política: http://www.viapolitica.com.br/principal.php