sábado, 10 de outubro de 2009

Gazeta em forma de e-meio 103

Reflexões do gazeteiro (III)

Passaram-se 200 anos para que o fiasco do jovem visionário brasileiro em Lisboa fosse vingado pela contundente vitória de outro jovem brasileiro, desta vez em Paris. E, novamente, a aeronáutica deve ao jornalismo combativo e leal aos fundamentos originais do ofício, que ainda se praticava na França, um papel fundamental no decorrer dos fatos, no registro deles e na afirmação irrevogável da verdade histórica.

Ao contrário de Gusmão, Santos-Dumont chegou na Europa sem alarde ou aviso; não foi lá para fazer petições a poderes constituídos, para se exibir em palácios ou pedir favores. Foi porque Paris possuía as condições de que ele necessitava para realizar o que tinha em mente, não como sonho visionário, mas como cálculo ousado ao qual o destino acabou por conceder-lhe o prêmio, aliás bem maior do que toda a audácia de um jovem gênio inventor de sua época poderia projetar.

Numa fulminante trajetória de apenas dez anos, do balão Brasil (1898) ao Demoiselle (1908 - o primeiro avião do mundo, e não o 14-Bis, como muitos acreditam), realizou nada menos de 23 projetos aeronáuticos pioneiros, verdadeiras obras primas de engenho e arte, 15 dos quais ele mesmo pôs em vôo, além de inúmeros inventos secundários, mas nada desprezíveis, tais como os primeiros motores a petróleo (incluindo o famoso V-8 e o motor de “dois tempos”), o relógio de pulso, o chuveiro para banho, a descarga d’água em vaso sanitário, a madeira compensada, incontáveis ferramentas de oficinas e uma longa sequência de etcéteras. Em nove desses dez anos, desfrutou a condição de ser o único ser humano em todo o mundo a compartilhar com os pássaros o tridimensional e até então inexplorado espaço sem fronteiras da atmosfera terrestre.

- “Digam o que disserem, não há dois dirigíveis no mundo, mas apenas um. E é preciso vir até Paris para vê-lo” – disse Deutsch de la Meurte em 1901, sob a pressão de grande polêmica por conceder o prêmio a Santos-Dumont pelo célebre vôo até a Torre Eiffel.

Para os manipuladores de plantão, a trajetória do jovem brasileiro em Paris era uma verdadeira dor de cabeça. Não se subordinava a ninguém, não pedia auxílios, favores ou permissões, não reconhecia autoridades, não perguntava se podia ou não voar ao seu bel prazer pelos céus de Paris – e quem poderia impedi-lo? Além do mais, não permitia que os frutos de sua genialidade servissem a interesses de quem quer que fosse, a não ser à Humanidade mesma, a quem doou sem pedir nada em troca todas as suas invenções extraordinárias, sem exceção. Registrava-as, sim, todas, mas sempre para o domínio público (“que péssima idéia!”), e levava às barras dos tribunais os que tentavam usurpar-lhe invenções em benefício próprio.

Esse é o tipo de rebelde mais perigoso para os manipuladores de sociedades. Eis por que, mal despontou a possibilidade de que Santos-Dumont poderia resolver o problema do transporte aéreo, já então na mira da ganância das maiores potências capitalistas, começaram os boicotes e as sabotagens contra o jovem inventor e sua obra imortal. E, se não fosse o apoio do jornalismo combativo e incorruptível que era praticado pelos principais jornais daquela Paris de então - que trouxe ao inventor o apoio inarredável da opinião pública -, com certeza teriam logrado impedi-lo de chegar onde chegou.

Gondim da Fonseca, uma das maiores glórias do jornalismo brasileiro e o melhor biógrafo de Santos-Dumont, descreve em preciosos detalhes o combate que se travou, inusitadamente, numa nação famosa por seu chauvinismo, entre uma imprensa honesta e atuando responsavelmente em defesa da glória merecida de um estrangeiro e os poderes interesseiros e xenófobos, que procuravam sabotá-lo, desqualificá-lo e desacreditá-lo.

Gondim, que é também o autor de uma das obras mais importantes sobre o petróleo (O que sabe você sobre o petróleo?, de 1958), que, segundo Gilberto Vasconcellos, ainda não foi superada, concede a Santos-Dumont não somente a glória de ter sido o inventor do aeroplano, mas também a de ter “descoberto” o petróleo:

“Parece incrível que ninguém, a não ser esse moço brasileiro, visse claro o futuro do petróleo. Ninguém, nem o próprio John Rockfeller (maioral da geração de barões salteadores que construiu os Estados Unidos), milionário carola que respondia na ocasião a vários processos de fraude por haver lesado centenas de criaturas –, percebeu, como Santos-Dumont, que o novo carburante mineral se tornaria no século XX o que o carvão de pedra se tornara desde o segundo quartel do século XIX: um dos máximos instrumentos da força e do progresso.”

Porém, no que toca a estas reflexões do gazeteiro, a contribuição de Gondim à biografia de Santos-Dumont que mais importa é a da batalha das idéias e o papel do jornalismo consequente não só para o registro verídico da história, mas para a vingança da verdade coeva pela qual aqueles jornalistas lutaram com bravura, inclusive despojando-se dos impulsos tendenciosos e chauvinistas e esquivando-se das tentações do diabo capitalista, que sempre se apresentam em tais ocasiões.

Os principais diários parisienses, como o Les Temps, o L’Illustration, o Figaro, o Petit Journal, entre outros, engajaram-se na luta a favor daquele solitário jovem que, com a ajuda de alguns poucos operários e às próprias custas, competia com as nações mais ricas e poderosas do planeta, a própria França, a Inglaterra, a Rússia, os EUA e até o Japão, na corrida tecnológica para encontrar a solução do transporte aéreo, que então se vislumbrava não mais como uma perspectiva visionária, mas como uma realidade concreta, fosse através do mais-leve ou do mais-pesado-que-o-ar.

Gondim cita jornalistas da estatura de Maurice Talmeyr, Adrien Hébrard (editor do Les Temps e conhecido como “o informadíssimo Hébrard”), Georges Goursat (também caricaturista e artista plástico), Francois Peyrey, além de fotógrafos e cinematógrafos (incluindo os irmãos Lumière) e toda uma geração de jornalistas e comunicadores irredutíveis formados na tradição combativa de um jornalismo que se estruturara desde o século anterior nas penas imortais de gênios como Balzac, Victor Hugo, Zola, Anatole France, para só citarmos alguns. Enfrentando com coragem o pesado lobby dos interesses políticos e financeiros que queriam para si as patentes e privilégios das invenções que viabilizariam a aeronáutica e mudariam o mundo, acompanharam, passo a passo, toda a trajetória do jovem gênio brasileiro naquela década de invenções e descobertas, apoiando-o e conquistando para ele e seus propósitos desinteressados a opinião pública nacional e até a mundial. As coberturas dos jornais franceses transcenderam as fronteiras nacionais e se espalharam por todo o mundo; Santos-Dumont tornou-se um nome internacional entre os mais celebrados de sua época.

O volumoso dossier que as reportagens desses jornalistas geraram pelas matérias publicadas e não publicadas sobre aqueles fatos constitui-se num acervo documental de tal ordem que deixa sem qualquer seriedade a discussão que tente contestar a verdade histórica que se consagra, sem margens para dúvidas, nesta sentença inscrita em mármore no marco da praça de Bagatelle:

LE 12 NOVEMBRE 1906 SOUS LE CONTROLE DE
L’AEROCLUB DE FRANCE
SANTOS-DUMONT
A ÉTABLI LES PREMIERS RECORDS
D’AVIATION DU MONDE
DURÉE 21s 1/5 DISTANCE 220m

Este é o registro do celebérrimo vôo do 14 Bis. Mas o primeiro aeroplano a voar no planeta Terra seria fruto do projeto nº 19 de Santos-Dumont, iniciado em 1907, saído de um insight do inventor após várias tentativas frustradas de aprimoramento do 14 Bis, incluindo dois projetos de helicóptero que foram também descartados.

O projeto vitorioso foi posto em operação no início de 1908. Desde então, o Libelulle e o Demoiselle, nos dois apelidos que lhe deram os parisienses, o primeiro para o modelo nº 19 (por causa da cauda feita de uma só vara de bambu) e o segundo para os modelos aprimorados de nº 20 e nº 21 (pela delicadeza dos designs), passaram a ser parte do dia-a-dia dos céus parisienses. De tal forma que se tornaram os primeiros veículos automotivos produzidos em série (foi Santos-Dumont quem inventou a produção em série e não Henry Ford, como se pensa por aí), fabricados e comercializados nas firmas Clement-Bayard (75 exemplares) e R. Dutheil, R. Chalmers & Co (60 exemplares).

Depois, Santos-Dumont os aprimorou ainda mais e publicou todo o projeto, nos mínimos detalhes, na revista norte-americana Popular Mechanic, autorizando a produção ilimitada a quem a desejasse. Foram produzidos milhares de exemplares em todo o mundo e, até os anos 1960, o Aero Clube de Paris ainda mantinha um concurso anual para premiar a melhor réplica do Demoiselle que fosse construída no ano anterior.

Nesta aeronave, desde a sua primeira versão, estão presentes os fundamentos básicos (características elementares) de todos os aeroplanos que a ela se seguiram e são produzidos até os nossos dias, a saber: a decolagem autônoma, a sustentação com asas de perfil aerodinâmico, o baricentro (centro de gravidade) em posição estável, os três comandos aerodinâmicos básicos (leme e profundor traseiros e aileron nas pontas das asas), o cockpit em localização dianteira para pilotagem em posição sentada e o trem-de-pouso com rodas pneumáticas. A propulsão por motor de combustão interna a petróleo, apesar de esmagadoramente dominante nas gerações posteriores de aeroplanos até os nossos dias, em particular nos de pequeno porte, não é obrigatória e pode variar para turbinas e outros tipos de motores acionados por diferentes combustíveis.

Confirma-se assim, também na aeronáutica, a tese filosófica lembrada na gazeta passada. Todo aeroplano pilotado pelo homem de ontem, de hoje e de sempre, ou possui todas as características elementares do primeiro aeroplano construído pelo homem, o Demoiselle, ou não é um aeroplano.

O 14 Bis só possuía a primeira e a última dessas características elementares, ou seja, a decolagem autônoma e o trem-de-pouso com rodas pneumáticas. Quanto às demais, a sustentação era dada por asas de estruturas cúbicas celulares (o papagaio chinês), só possuía dois comandos aerodinâmicos (leme e profundor) numa só estrutura cúbica celular dianteira, a nacelle (usada em dirigíveis) tinha localização traseira para a pilotagem em pé, e o baricentro era instável (o equilíbrio e o comando lateral eram dados pelo piloto, movimentando seu corpo).

O Flyer, atribuído aos irmãos Wright, que só foi visto pela primeira vez “voando” uns 30 a 60 metros em linha reta, no final de 1908 - quando Santos-Dumont, ao comando de seu Demoiselle, já fazia visitas de surpresa a propriedades de amigos nos arredores de Paris, percorrendo em 15 minutos de vôo distâncias que carruagens levavam três horas e meia -, não possuía nenhuma dessas características elementares. Decolava catapultado por uma geringonça chamada “Pylon”, que exigia o concurso de uns doze homens bem fortes para armá-la, e o piloto comandava a traquitana “voadora” deitado de bruços no centro da estrutura do tipo celular (que dava sustentação aerodinâmica ao conjunto) para conseguir a estabilidade do baricentro e, ao mesmo tempo, exercer, movimentando seu corpo, o comando lateral. Pousava sobre esquis.

Este gazeteiro é autor de um livro em forma de roteiro cinematográfico editado em 1995, com tiragem limitada, intitulado Dans L’Air – A via Santos-Dumont, que pode ser encontrado na íntegra no seguinte endereço internético: http://marioobras.blogspot.com/2009/04/1995-ficcao.html

A obra culmina mais de vinte anos de estudos e pesquisas sobre o tema e este autor crê, com segurança, que, se não fossem a valentia e a honestidade profissional dos jornalistas que acompanharam as façanhas do nosso gênio da aeronáutica, é possível que Santos-Dumont não chegasse sequer ao 14 Bis e, consequentemente, ao insight que o levou a projetar, construir e voar o primeiro aeroplano da história.

Não é possível sabermos o quanto isto retardaria a evolução tecnológica da aeronáutica, mas apenas para termos uma noção das possibilidades, o próximo insight decisivo para a aeronáutica somente ocorreria em 1939, no gênio do projetista russo Igor Sikorsky, ao “achar”, de estalo, a hélice traseira estabilizadora que tornaria possível a construção do helicóptero imaginado quase 400 anos antes por Leonardo Da Vinci, e cuja solução foi tentada ao longo de todos esses anos, sem sucesso, por vários outros gênios inventores, incluindo Santos-Dumont.

A Gazeta continuará no tema.