segunda-feira, 2 de março de 2009

Gazeta em forma de e-meio 76

O filósofo do “vale de lágrimas” II

Na primeira parte demos alguns trechos recolhidos das páginas iniciais do belo volume de 430 páginas que resultou desse admirável manuscrito, intitulado A Sociologia dos países subdesenvolvidos, depois do competente trabalho tipográfico e editorial que o trouxe à luz.

Mas, para além do magnífico tratado de sociologia que agora nos chega (não queremos economizar a adjetivação elogiosa dessa obra prima), o que nos entusiasma na obra desse autor é a surpreendente atualidade de sua argumentação sempre exaustiva, nunca tardia e formulada a partir de uma cristalina lucidez dentro de uma mais que vanguardista visão do mundo. Muitas das questões ali colocadas há mais de trinta anos ainda hoje mal começam a ser tratadas publicamente, e até os mais bem preparados autores atuais não alcançam tratá-las nos mesmos níveis que ele. Sua obra, produzida solitariamente há mais de três décadas, possui a rara virtude de ser, na posteridade, não somente oportuna, mas capaz de atualizar novos estudos, ou em elaboração, mesmo os que se acham em estágios avançados do conhecimento.

Já conhecíamos linha por linha da sua genialidade autoral nas 1.400 páginas que foram publicadas em dois grossos volumes pela mesma editora, em 2005, a partir de originais datilografados pelo pensador no final dos anos 60 e início dos 70: O Conceito de Tecnologia.

Este gazeteiro tem por ganha-pão o trabalho de inventor independente nesse malfadado campo do saber, a tecnologia, e pode assegurar que os estudos teóricos a ele dedicados, mesmo os mais autorizados, não logram validade de sequer uma década. Em média, duram meia década, não mais, logo quando se prescrevem conceitos, técnicas, termos, produtos e pensamentos que tratam, dada a vertiginosa e irracional competição “inovadora” a que o tema é submetido semântica, comercial e ideologicamente.

No entanto, este gazeteiro ainda não encontrou matéria mais atual e atualizadora nessa disciplina do que aquele exaustivo tratado, no qual o autor desmantela e desmistifica a mitomania endeusadora de máquinas “inteligentes” e seus pseudodemiurgos, além de desmascarar a falsa genialidade atribuída aos últimos, quase sempre submissos mental e ideologicamente aos interesses inconfessáveis de seus gerentes e patrões.

O Conceito de Tecnologia é um mergulho em profundidade abissal, crítico e analítico, no campo da Cibernética e as três ciências dela derivadas, que o autor, desde então definindo-as e classificando-as com pioneirismo e talvez em primeira mão, chamou de Robótica, Biônica e Informática. É a única obra dedicada ao tema que permanece atual na estante deste gazeteiro, fazendo-se alicerce de nossos trabalhos dedicados à cultura da memória e à ciência da informação, ao lado de autores consagrados em disciplinas bem mais perenes em suas construções teóricas como Antonio Houaiss (Bibliologia) e Lancaster (Arquivística).

Em certas passagens daquela obra, o nosso autor teve de criar neologismos para explicar fenômenos que antevia como resultantes das alucinações dos ‘futurologistas’ que prognosticavam um futuro dominado por máquinas “inteligentes” que prescindiriam da força criadora do trabalho humano, substituindo-o. Novas palavras, tais como managerismo (do inglês manager; gerente) - prevendo até a entronização de uma nova estética de gerente a protagonizá-lo, figura esta que hoje é conhecida pelo pejorativo yuppe -, antevendo a catástrofe que então se gestava, quase imperceptível, e que resultaria na base mesma do reinado neoliberal, responsável pelo inferno que causou e ainda causa às populações do mundo todo pela (super) valorização do burocrata (manager), forjador de riquezas abstratas, em detrimento do trabalhador, realizador de riquezas concretas. Temas e termos hoje vulgarmente usados como chip, hardware, software, informática e muitos outros são ali tratados com espantosa vigência de conteúdo numa época em que eram restritos a laboratórios de ponta das centrais de Inteligência da Guerra Fria, em caráter altamente confidencial e assim preservados a ferro e fogo pelos estrategistas dos poderes hegemônicos.

Mas em A Sociologia dos países subdesenvolvidos ele trabalha matéria bem mais delicada e ainda quase totalmente desfocada nas miradas da lógica, impossível de se decifrar pelos limitados recursos da lógica formal e somente possível de ser desvendada pela aplicação da lógica dialética, ferramenta que o autor maneja como ninguém mais.

E é com ela, utilizada em implacáveis raciocínios de rigor científico, e não com especulações formais, jornalísticas, místicas, paranóicas ou ocultistas, que ele desvenda e põe a nu a grande conspiração que historicamente tem sido levada a cabo pelos centros de poder mundial contra nós (agora, sem aspas), os habitantes do “vale de lágrimas”, a fim de nos acreditarmos os culpados das desgraças que sofremos e nos manter nele, solidificados no statu quo da iníqua divisão da humanidade em classes sociais, que privilegia o mundo autodenominado “desenvolvido” e, em particular, seus núcleos de poder.

Ao decidir escrever este artigo, este gazeteiro encontrava-se na página 112 das 430 do livro. Portanto, há mais, muito mais. Mas, nessas primeiras páginas, já se conduzem os prólogos da contundente denúncia que penetra as entranhas da conspiração manipuladora da realidade que, como sabemos, nos é perpetrada principalmente nos veículos de mass media e nas universidades e demais “respeitáveis”instituições da ciência oficial.

Ela nos é servida em teses “sociológicas” pseudocientíficas, amplamente divulgadas e aceitas como absolutas, mas que tem por propósito “a translação da sociologia para outros campos do saber” (a psicologia, a biologia, a ética, etc) e respaldar fraudes doutrinárias que sustentam uma sempre alegada inferioridade dos habitantes do “vale de lágrimas”, por razões “naturais”, sejam psíquicas, raciais ou étnicas.

É no contexto de tais “trabalhos” que surgem “novas” expressões cuidadosamente elaboradas por “sociólogos” serviçais para a manipulação “científica” do conhecimento: a deformação semântica, como o nosso pensador denominou tais processos que visam interferir na comunicação social para ocultar ou confundir a percepção do real.

Para exemplicar, termos como poluição, controle de natalidade, ecologia, ecossistema e outros que na época em que ele redigia essa obra mal começavam a frequentar as páginas de seções especializadas dos jornais como balões de ensaio de tal “sociologia”, são por ele desmascarados e desvendados em suas secretas definições no contexto da histórica conspiração manipuladora das sociedades, que denuncia.

Foi quando chegamos ao ponto do livro em que o autor trata uma das mais ardilosas deformações semânticas, contra a qual temos procurado ansiosamente promover o debate e a denúncia através da imprensa, mas em vão e absolutamente sem eco, que encontramos, enfim, a primeira resposta aos nossos chamados e decidimos por escrever o presente artigo. Além do que, ela foi, para “nós”, atualizadora e complementar ao que havíamos pensado e escrito a respeito.

O ardil a que nos referimos vem sendo vulgarmente disseminado e difundido no conceito solerte que passou a se introduzir em determinados usos da palavra “grupo”, e que, no decorrer das três últimas décadas, vem causando à nacionalidade danos perturbadores e até catastróficos.

No “vale de lágrimas” não mais nos é dado desfrutar, no firmamento da inteligência, a brilhância estelar maior nas pessoas e realizações autorais de nossos gênios criadores, inventores e artistas. Não, aqui as conquistas das artes, das ciências, da indústria e do saber, quando podem se manifestar, passaram a ser atribuídas a “grupos” industriais, financeiros, artísticos, empresariais, etc. Atualmente, no “vale de lágrimas” só nos é concedido o brilho menor ou a opacidade dos “astros” das telenovelas, dos esportes, dos programas de auditório e dos reality shows.

Damos a seguir umas poucas linhas das muitas que compõem as reflexões do genial autor sobre tal conceito e respectiva deformação semântica:

“O conceito de ‘grupo’ traz inúmeras vantagens [para os manipuladores de sociedades], que, por necessidade, reduziremos a duas principais: a) a supressão do indivíduo enquanto tal que é sempre uma presença ameaçadora, pois nunca se sabe, tratando-se do homem livre, e especialmente do trabalhador, se será dócil ou recalcitrante em sua realidade existencial. Daí ser útil ocultá-lo, escamotear o significado, que tem, de unidade essencial da sociedade, para introduzir em lugar dele o ‘grupo’, apresentado evidentemente na condição de dado concreto, objetivo, irredutível (...) b) praticar a operação lógica de abstração formal, a fim de passar do ser humano concreto, com suas qualificações inalienáveis e inconfundíveis, ao ‘grupo’ amorfo, ou dotado de especificações que arbitrariamente nele são reconhecidas [pelos manipuladores]. (...) E tudo pela simples razão de que, se o homem é sempre alguém, o ‘grupo’ não é ninguém. É apenas uma figura de retórica, concebida de acordo com as conveniências para efeito das combinações, classificações, distribuições e, sobretudo atribuições que devam receber [dos manipuladores].”

Tal conceito de “grupo” tem sido amplamente utilizado nas políticas públicas relacionadas com a nossa produção cultural, em todas as áreas em que ela se pode manifestar pelo trabalho coletivo, e, mais especificamente, em três de suas expressões fundamentais: a música, a dança e o teatro. Em meados do ano de 2002, este gazeteiro escreveu uma série de artigos para a revista Caros Amigos, sob o título geral Arte sem artista? (não publicados) que contêm passagens como as que se seguem:

“Explica-se assim por que as artes cênicas brasileiras têm sido as vítimas prediletas dos manipuladores. Sem dúvida, nota-se no cenário da nossa produção cultural cada vez mais a presença de nomes de ‘grupos’ assinando trabalhos de arte representativa, ao invés dos nomes de seus principais actori (músicos, bailarinos e atores). Teatros, balés, performances musicais e outros espetáculos do gênero são agora anunciados como obras de determinados ‘grupos’, como se isso de fato pudesse existir.

“Assim, os proprietários desses ‘grupos’, geralmente empresários ‘culturais’ que nada fazem pela arte e pela cultura, usurpam sucessos que não são deles, principalmente os financeiros, que são os que mais lhes interessam. Tais empresários às vezes concedem aos actori a gentileza de publicar seus apelidos (Bel, Juca, Malu, etc) em ordem alfabética nas revistas-programa, mais ou menos como os fazendeiros apelidam as vacas de seus currais, e estão em conluio com burocratas e patrocinadores ‘culturais’, dividindo entre si os resultados realizados a cada empreendimento, com o apoio da mídia que recebe sua parte através da rubrica ‘divulgação’. (...)

“A forma mais fácil de conseguir esse objetivo é a eliminação do actor como indivíduo realizador da actio (ação cênica) e sua substituição - aos olhos do público mal informado - por um ‘grupo’ de actori sem nomes. Assim, o público é aparentemente conquistado pelo ‘grupo’ e não pelos artistas que sobem ao palco, e, como dizia Carlos Drummond, ‘expõem suas carnes às feras’. Será o nome do ‘grupo’ que o público levará na memória, pois ele é que é amplamente divulgado e interessadamente elogiado pela cumplicidade dos veículos de comunicação.”

Assim, e por vias dessa interação histórica no processo das idéias, genialmente proposta pelo autor a que dedicamos este artigo, recebemos em 2009 a resposta de um chamado que fizemos em 2002, sob a forma de um texto por ele composto nos anos 1970. Este gazeteiro não tem conhecimento de outro escrito, publicado ou não, sobre essa absurda deformação semântica, altamente prejudicial aos artistas nacionais e que vem provocando danos severos à produção contemporânea brasileira de arte e cultura. Caso o leitor saiba de algum, pedimos-lhe a gentileza de nos enviar ou nos endereçar a ele.