domingo, 1 de março de 2009

Gazeta em forma de e-meio 75

O filósofo do "vale de lágrimas" - I

“As religiões milenares, orientais e ocidentais, e as ideologias pessimistas esforçam-se em retratar o mundo no que a humanidade se tem desenvolvido, desde que, nos diversos grupos que a formam, se iniciou o regime da divisão social em classes antagônicas, utilizando a conhecida imagem do ‘vale de lágrimas’. Compreende-se que assim procedam. As primeiras, por necessidade, pois, se não convencerem os homens de que, por uma tristíssima fatalidade, têm de passar a existência no mais doloroso sofrimento, submetidos a toda espécie de privações, provações e por fim à morte, deixa de ter sentido seu papel com que se justificam, o de ser o único veículo de ‘salvação’ para nós, desgraçados viventes. As segundas porque, se não pressagiarem a impossibilidade absoluta de um destino melhor para as gerações humanas, sua função intelectual paralisante de mensagem provinda de um poder central explorador do trabalho das massas não só se tornará inútil, mas, ainda pior, daria oportunidade a essas últimas de conceberem a idéia de serem capazes por si mesmas de vencer tão calamitosa situação e construir um regime de convivência isento dos males e penúrias que atualmente as oprimem.”

Assim se abre esse extraordinário texto recém publicado (2008) do genial pensador de que tratamos neste artigo. O autor datou o manuscrito como inciado em 13 de agosto de 1974 e terminado e revisado em 13 de fevereiro de 1977. Segundo o organizador da edição, foi feito do próprio punho e “com uma letra extremamente pequena”, e a equipe de digitação precisou valer-se de “uma lupa potente para realizar a leitura”.

Ora, o Brasil, como toda a América Latina e o Caribe, configura-se em uma região importante desse imenso desfiladeiro de misérias humanas que é o “vale de lágrimas”, desde a invasão européia iniciada por Colombo, Cabral e outros. Pressupõe-se, a partir de códigos pré-estabelecidos nas matrizes do poder central, que tal lugar não é próprio para o pensamento científico ou artístico, muito menos o filosófico.

De fato, os mecanismos que são utilizados para tornar isso uma “verdade” não são fáceis de combater. Eis que

“Quando um país plenamente representativo do ‘vale de lágrimas’, em virtude do estado de atraso no desenvolvimento das forças econômicas e da opressão política de grupos dirigentes, que lhe tiram a liberdade de expressão do pensamento coincidente com os interesses das massas trabalhadoras, toma consciência de sua realidade, o filósofo que acaso venha a produzir e que se queira manter identificado ao destino do povo tem de proceder à difícil e penosa operação de dividir-se em sua condição existencial. É obrigado, às vezes por um período desoladoramente longo, a tornar-se ao mesmo tempo o sujeito criador das idéias libertadoras e o público, que as deve executar. (...) Deve sentir-se atuante nos dois papéis, o que é uma extraordinária façanha da liberdade individual. À falta de público, dada a circunstância da tirania reinante, tem de tornar-se o seu próprio público, esperando o dia em que os ‘outros’ efetivos o possam ouvir.”

Esses “outros” somos “nós” que o estamos ouvindo agora, 22 anos depois de sua morte. Vamos manter em “nós” as mesmas aspas que o autor deu aos seus “outros”, evitando assim a generalização de um universo que se limita sempre àqueles que se atrevem a resistir às forças invasoras, persistindo em ler, escrever e pensar sob condições extremamente adversas, uma vez que, ao que ousa fazê-lo

“(...) não lhe é permitido o silêncio, que neste caso se confundiria com a cessação do pensamento ou com o desânimo quanto às finalidades que cultua. Não pode deixar de falar, mesmo sabendo que o faz para si mesmo, e que só o escuta o papel que absorve as linhas que escreve. Porque, sob a forma idealizada de ‘público’, a voz que ouve não lhe parece a sua e sim a de quem ensina o que é preciso saber e diz o que se deve fazer. No ato do ouvir silencioso a voz, os lamentos e imprecações das multidões dispersas há uma crítica implícita, que é dada pelo exercício do pensamento indagador. Mortal seria o desistir de pensar, a ausência de percepção, ainda que interior e muda, o esquecimento da arma intelectual!”

A esse autor não seria novidade o advento da nova modalidade de escrita eletrônica que hoje podemos praticar, bem assim as possibilidades de sua instantânea distribuição mundial via internet, inovações tecnológicas para ele facilmente previsíveis, já que as conhecia em níveis teóricos os mais avançados, como se verá mais à frente. Mas, tendo sido ele um pensador que se expressava através da palavra escrita, ao seu tempo de vida não foi dada outra alternativa senão o labor solitário sobre a folha de papel.

Eis que, agora, para “nós”, autores que se expressam nas diversas artes e ciências e por vários meios, o público não mais se faz obrigatoriamente sob “a forma idealizada”, pois os nossos “outros” efetivos, por poucos que sejam, já nos podem ouvir de imediato, podendo também interagir, contribuir e dialogar com qualquer um de “nós”, “que acaso venha a produzir”. Ou seja, dispomos hoje de uma arma intelectual muito mais poderosa e, portanto, com mais motivos e mais forças para crer, como o filósofo, que

“No silêncio da reflexão aparentemente inútil é que a visão da realidade se aprimora, se desvenda em suas trágicas minúcias e se prepara para realizar em plena lucidez o contato com os ‘outros’, na plena força de uma eficácia invencível. O pensar nunca é inútil, porque conserva a vitalidade daquilo que os embrutecedores desejam acima de tudo destruir, a capacidade de a consciência crítica dizer a verdade, que a pressão asfixiante procura impedir seja conhecida. Se o pensador se omite no trecho obscuro, noturno do caminho, à espera do raiar do dia, não está compreendendo que é a sua meditação solitária e sem ressonância que, em parte, prepara o nascer do sol. Porque o dia não é apenas a luz física que a rotação dos astros traz com necessidade mecânica. O dia é a proclamação do novo saber, a palavra que definirá o que se espera, a idéia que se fará o ser da Humanidade emergente.”

E é assim, pois, que ele assume o seu engajamento na contenda:

“A verdadeira revolução é o desabrochar das novas idéias que as antigas fecundam pelo fato inevitável de se esgotarem. Mas é preciso que durante a calamidade o pensador que contempla antecipadamente a aurora esteja sem cessar entregue ao trabalho de observação, para depositar em algumas folhas de papel, cristalizada, a natureza dos tempos futuros a construir. (...) A condição, porém, para que o pensador de um país subdesenvolvido e sem soberania desempenhe este que é o seu único e justificável papel, consiste em se preparar pela prática permanente, pela ascese da dupla disciplina existencial, para a missão a que se dedica e executa na longa noite ártica da inteligência.”

Tal visão otimista sobre o dificílimo papel do filósofo em tais condições – e, como vimos, o autor, desde a primeira linha do texto, se coloca em posição crítica ou mesmo antagônica às igrejas milenares e às ideologias pessimistas – nada tem de banal nem de profissão de fé; ela é brilhante e cientificamente revolucionária:

“Deste modo, nosso desejo é aparecermos não como um filósofo conhecedor das vicissitudes do ‘vale de lágrimas’ que observa ao seu redor, mas como legítimo habitante dele, identificado até o mais profundo de sua essência humana e individual com os milhões de compatriotas e demais contemporâneos dispersos por toda parte do mundo subdesenvolvido, convencido de que esta suposta pobreza e inferioridade de visão, a de quem se recusa a escalar os píncaros circunstantes na suposição de que assim enxergaria melhor e mais longe a paisagem, é na verdade a sua principal, e de fato a única, superioridade, a que lhe é dada pela equiparação com os anseios das massas oprimidas. O resultado necessário de tal salutar atitude será uma consciência que, discutidas as imperfeições e limitações individuais, reflete fidedignamente as condições objetivas do mundo miserável, tem possibilidade de melhor descortinar soluções, e adquire o direito, que não pretende ser o dos profetas tribais antigos, mas o dos esclarecidos cientistas modernos, de proceder a denúncias que se revestirão de caráter filosófico definido, e irão constituir a sociologia dos espoliados em oposição à dos espoliadores.”